outras páginas.

(Re)inventar.


Inventou amor
Dentro dela
Não conseguiu tirar

O mundo ficou pequeno.

[João Paulo Cuenca]

Aproximou-se aquele dia, depois de tantos dias, para me devolver o livro que esqueci em seu quarto. Não notou que meus cabelos balançavam uma crise existencial no meio de todo aquele gesto, de todo aquele sorriso largo, de toda essa coisa confortável que sua presença me trazia. Nunca foi muito bom em notar, na verdade. Bebeu do meu suco: senti o hálito de estrelas adormecidas no céu da sua boca. Trocamos algumas palavras enquanto meus dedos brincavam com a borda do copo e ele comentava alguma coisa sobre o último parágrafo de algum capítulo. Acendeu um cigarro, fez um samba batucando na caixinha de fósforos e eu pensando em como seria bom deixá-lo tomar conta de tudo o que guardo. Ele ficava ali, muito parado, muito bonito, me olhando.

Daquele instante, não teve convite nenhum. Não ousou me olhar com outros olhos, com olho algum. Apenas pegava minha mão, fazia um carinho, dava um cheirinho, me convidava para mais uma noite de música. Era importante porque deixei que se tornasse. Deixei que me apanhasse em casa todas as noites que quis. Nunca precisou perguntar nada, eu não dizia nada. No final, me abraçava, pontuando tudo. Era só o que eu precisava. Depois do abraço, ninguém notava, mas sempre voltávamos trocados: um levando o coração do outro. Eu já pensava muito nele. Ele, que me tocava, me sorria, me desmantelava. E eu ia amando, serena, disfarçada, com medo de gritar. Ele gesticulando enquanto dirigia e eu falando de tempos antigos, sobre a vida ser uma invenção fantástica, sobre as saudades das praias, minha vontade de ir embora, meu descaso com os sentimentos. Arrumava desculpas para colar sua pele na minha só para ver o que despencaria de tamanha fusão.

Não espalhamos nossos amores no chão do quarto, mas deitávamos juntos na cama estreita para assistirmos ao mesmo filme pela enésima vez. Ele guardava meu sono. Jamais soube das minhas pieguices. Não me viu chorar no teatro no meio daquela história de amor e caras pintadas. Me ouviu dizer que todas as histórias são de amor e ficava feliz quando eu estava feliz. Me fotografou, provou do meu doce, espalhou seu perfume em minha casa, misturou seu cheiro nas minhas blusas preferidas. Jamais soube das minhas neuroses. Implicava com meu sotaque, me ouvia falar da Bahia. Jamais soube da minha vontade de beijar as pontinhas dos seus dedos. Não sabe que quarta-feira é dia de Iansã e meu dia preferido. Jamais soube que alguns meses depois, três horas da tarde, quando cantarolei o trecho daquela bossa que ele assobiava, eu já estava completamente perdida. Me sentia bonita, toda luzindo e meio azul, porque eu sentia. Até a última gotinha, eu sentia. E pintava tantas vontades naquela tela, com tanta pressa, que os sentimentos se borravam todos e ficava só aquela mancha vermelha de coisa feita para arder.

Veio então esse instinto de convidá-lo para fugir. Mas preferi ficar ali, enquanto ele me falava de constelações, astrofísica, sopa, a cor dos olhos de Chico, futuro, cinema. Eu, atenta, morando naqueles olhos escuros, pensava num abajur barato. Pensava em como francês é lindo. Quis rabiscar as paredes da sala, pregar o botão que caiu da sua roupa, que ele me acompanhasse, que me perguntasse aquele monte de coisas doidas que não pergunta a mais ninguém, que me deixasse aninhá-lo em meus braços. Pensava em gastar aquela grana comprando uma vitrola antiga, discos. Imaginava que tudo o que precisávamos era um tapete enorme, algumas almofadas e uma parede de fotografias. Pensava em colocar uma bandeira com nossos nomes na lua. No fim, só acabava puxando-o pelo sorriso até a próxima esquina.

Foi meio aquela história de avencas e samambaias e crescimentos insuspeitados. E eu inventando histórias aleatórias e muito intensas enquanto ele ia tomando conta de mim e eu pensava nas cartas que escrevi para o meu primeiro namorado, sem saber de nada da vida. Não sei de nada da vida. Sentava na escada com meu caderno, desenhava estrelas de caneta bic e pensava em como o cheiro do pescoço dele me pervertia. Pensava em passar as horas ali, ouvindo Novos Baianos e completamente viciada em falar de amor.

Lembro muito da noite em que segurei um cálice de vinho, olhei em seus olhos e adiantei as saudades só para que elas acabassem se confundindo, na esperança de que depois não soubessem por onde caminhar. Me embriagava e repetia: está tudo bem, coração. Tudobemtudobem. E vinha essa vontade de chorar, fugir para alguma cidade no interior de Minas, publicar um livro só para contar que tinha achado um amor e ainda sentia. Repetiria em uma folha inteira: ainda sinto. Ad infinitum. E provaria que nada mais é tão importante assim.

No momento em que minha língua adormeceu de tanta poesia, meus gestos lhe explicaram que existem pessoas que ainda acreditam, sentem, deitam na grama, enlouquecem, caminham sem rumo, abraçam, se importam. Existe o sempreamar. E enquanto for assim, vale a pena estar vivo. A vida. Essa vida, em todas as cores-dores-energias-sinceras. A punição não é outra senão carregar esse coração cada vez mais arregaçado de tanto. De tudo.

Coisa mais frágil, entregue, irresponsável, amara. O amor. Dura o tempo de um para sempre.

E começa outra vez.

______________________

Junho de 2011, republicado.

Comentários

  1. De um jeito muito meu eu sempre soube que esse texto voltaria. Porque ele é perfeito. E já te disse que não achei que tu fosse deletá-lo.
    E quando vi que era ele, eu fui lendo e percebi que conheço cada palavrinha e sei quase de cor, de tanto que eu já li.

    Jaya,
    eu te digo tanta coisa e no fim, não digo nada, né?! Enfim...

    A gente tem que acreditar. Existe o sempreamar. Existe esse amor para a vida toda. Mesmo que não seja pra sempre. "Que seja eterno enquanto dure." Já disse o poetinha que tanto amou.
    A gente tem que fazer um esforço.
    E suas palavras ajudam a acreditar, de novo.
    Ah, Shaya, tu me ajuda tanto, nêga.

    Tu nem imagina o sorriso que me iluminou o rosto, quando voltei aqui agora.

    E vamos sim com o coração arregaçado, carregado de tanto.

    Obrigada, o tempo todo, por tudo.
    Mando carinho, beijo e sorrisos. Imensos e sinceros. Para você.
    :*

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  2. Jaya,
    fico sem palavras pra explicar o quanto eu sou apaixonada pela sua escrita, e especialmente por esse texto. Já tinha lido uma vez aqui no seu blog e se tornou meu favorito. Reconheci de cara logo nas primeiras linhas. É lindo como expressas sentimentos tão profundos com palavras tão simples, metáforas tão fortes. É impossível não te ler e não ir fechado os olhos e abrindo o sorriso num suspiro. Tens o dom dos grandes escritores: transformar em letras o que os olhos parecem gritar. Já disse e volto a dizer, boa sorte em tudo na sua vida. Alguém que escreve como você mais do que merece.
    Beijos, Bia.

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  3. Que coisa mais linda de ler!!
    Jaya minha querida você já percebeu meu encantamento por seus textos. FICO TÃO FELIZ quando tem um novinho para ler ôo coisa boa.
    Essa sua maneira leve pra falar dos amore me fascina...minha cabecinha vai longeee e meu coração fica todo agradecido.
    Que Deus te abençoe querida.Beijo

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  4. O que mais gostei? O "Junho de 2011, republicado" porque ele não merecia ficar fora do Líricas. Volto com calma pra comentar. Vim só dizer que te amo, que to com saudades e que sou uma bundamole --não mandei o email! ¬¬

    Aparece qndo der!

    Bjubju!

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  5. Ainda sinto. Gostoso, quase um carinho no coração.
    Jayalinda!

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  6. É aqui, lendo teus textos, que eu consigo acreditar com toda a força que o amor ainda existe. Que ele não desiste de nós, mesmo quando todo o resto diz o contrário. E é tão bom, sabe.

    Eu fico me imaginando nessas suas letras, pulando de uma pra outra, com o sorriso mais bobo do mundo, depois de ter as esperanças todas renovadas, mais verdinhas do que nunca.

    E você ainda me diz que eu sou azul, aiai. Azul é tu, com essa tua capacidade absurdamente linda de nos fazer acreditar, sempre, nesse amor bonito.

    Então, nada mais justo do que lhe agradecer, dona mocinha. OBRIGADA, SUA LINDA.

    Um sorriso.

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  7. Jaya. você é linda. é a única coisa que consigo pensar quando te leio.

    "era importante porque deixei que se tornasse".

    obrigada por existir
    bj

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  8. Lindo, lindo, lindo!


    "dura o tempo de um para sempre. e começa outra vez"

    graças a Deus, né Jaya?

    :)

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  9. eu vou e volto e você sempre aqui! ainda bem :)

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  10. Nem sempre os caminhos são convencionais (O que é ser convencional, afinal?), nem sempre o final é o esperado até porque a gente ama e ama muito, inteiro, pleno e desesperado e quem ama assim não quer saber de final.

    Lindo texto, parabéns!

    ;)

    Um beijo.

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  11. Jaya!

    Outro dia lhe falei sobre o encantamento que sinto quando leio você. É... Li e senti de novo. Não conhecia esse texto que você publicou novamente. Ele é lindo! Porque são lindas as histórias de amor que têm poesia, não no final, quando são contadas de um jeito bonito; mas quando ainda estão sendo escritas - esse é o amor feito para brilhar, como você disse outra vez. Porque tem que ter brilho, né? Aprendi isso aqui.Ele brilhou enquanto durou.

    É, "o amor. Dura o tempo de um para sempre". Você tem toda razão... E só por isso, por esse desejo de amar e fazer valer a pena enquanto há tempo, que a gente carrega esse coração arregaçado de tanta entrega. E entrega de novo...

    LINDO! De fazer meu coração sorrir...

    Amei seu comentário, viu? Obrigada pelo carinho e pela gentileza.

    Beijos, querida Jaya!

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  12. Você soletra o amor nos teus textos. A poesia que se acentua acalanta o nosso peito. Dá calma. a leitura fica suave, doce. És tão sutil na maneira que escreves. Venho aqui e toda vez me surpreendo. Com o cálido sentimento que você transborda. É como o título do texto, a cada texto você reinventa a forma de falar dos encantos, da magia que se exaspera no pleno do amor. Nunca é óbvio.

    Esta obra prima de texto é outra prova da tua infinita capacidade de tornar o amor multifacetado. Sem que possamos te ler e achar repetitivo. Porque é singelo, tão belo que repousa numa simplicidade envolvente. Tens grandeza na maneira sutil de amar.

    Você pincela amor nas letras. Vou até utilizar a frase de uma amiga minha: "Letras pintadas a guache".

    A tinta mais pura do amor. Do sentimento.

    Reinvente querida. Sempre tenha esta capacidade de tornar o amor sempre uma novidade.

    Beijos de quem te gosta muito!

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  13. Daí que eu percebo que nunca amei, e que não sei se sou capaz de. É lindo, Jaya! ;*

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  14. Adoro seus textos, sua sensibilidade-força que passa com o que escreve.
    Você, daqui, me parece toda iluminada!
    E forte como um touro, apesar de sensível como ave.
    Um beijo =*

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  15. Encantada com o teu dom com as palavras. Parabéns! Já conhecia alguns textos teus, e hoje tive o prazer de encontrar o seu blog.


    Um beijo *_*

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