outras páginas.

Jasmim.

Entrou já atrasada, descalça, segurando os sapatos de saltos muito altos na mão esquerda. Na mão direita, equilibrava a bolsa e um cigarro que tentava manter-se aceso entre o polegar e o indicador, apesar da chuva. Caminhava nas pontas dos pés, com os cabelos encharcados e a face em aquarela chorosa, pela maquiagem que escorria. Não quis toalha para enxugar o excesso de água, estava com muito calor - repetiu duas vezes. Sentou-se.

- Me protegi na marquise do prédio da esquina por quase uma hora, até que me descontrolei. Sou eternamente água em minhas vezes de sereia. Sol, ascendente, lua, Vênus: tudo água. Caminhei pela rua deserta em passos muito lentos, me deixando molhar na espera de que tudo o que ainda fosse broto acordasse dentro de mim. Tudo o que carrego quer amanhecer, principalmente no meio de uma madrugada muito amarela. Astrologia é uma das desculpas da vida. Hoje saí de casa querendo fazer parte de um musical, nadar pelada num rio de águas muito transparentes, me sentir plena, louca, solta, mulher – despudoradamente mulher. É necessário ser aceita, por ser. Afinal, não somos, todos? Saí querendo poder andar de bicicleta com meu salto agulha, que é tão frágil, mas equilibra o meu mundo – e só os deuses sabem o peso que o mundo tem. Saí querendo alguém que me queira gostoso, com olhos, nariz, boca, pele, sexo – e poesia. É preciso que se queira com poesia. Tenho sentido muito frio em dias com muito sol. Ando na expectativa de escrever um manual explicando que ninguém deve jamais ler a vida como um manual – não somos estáticos, nos fodemos e nos curamos dia e noite. Um coração partido se quebra para, na soma, multiplicar ainda mais de si. Tenho esses cacos todos, rachaduras profundas, já enlouqueci oitocentas e noventa e seis vezes nas últimas quatro horas. A loucura infinita se infiltrou em cada uma das minhas veias e escrevi um livro de ontem pra hoje, cento e dezenove páginas em nome da necessidade de me livrar de toda e qualquer história que ele ainda possa protagonizar na minha vida. Agora só tem espaço para mim – reticências infinitas para todos os novos roteiros que chegarão. Posso acender mais um cigarro? Me desculpe.

Enquanto falava, balançava muito as pernas. Soltava a fumaça entre os lábios bonitos que tinham um estranho formato de coração e parecia haver ali – atrás de toda a fumaça - um véu, através do qual eu peneirava seu desespero. Aquele delicioso desespero de quem vai. Ela estava indo.

- Acendo todos esses cigarros porque geralmente não sei o que fazer com as mãos, existe um vão muito grande e fico na ânsia de agarrar alguma coisa. Qualquer coisa. É tão importante que se tenha algo nas mãos! Você não acha? Talvez a ideia de possessão. De poder controlar algo. Sou tão intensamente descontrolada que meus olhos denunciam. Minha nudez maior eu carrego entre as pálpebras, sou transparente, muito clara, só me cubro para sonhar - é quando as pálpebras me vestem, então. Sentir continua a ser a única maneira que conheço de estar viva. Sentindo, não preciso fazer sentido algum. E não faço. Tenho visto todos aqueles filmes franceses, ensaiado uns puta delírios completamente europeus, entrado em transe a cada vez que uma coisa muito linda se aproxima. É incontestável a imensa beleza que tudo carrega. A minha ansiedade é desesperadora. Me livrei de promessas. As coisas agora acontecem quando me deixo engravidar por elas, preferivelmente ao engolir distraídos copos de cerveja e sentir a vida muito dócil, maleável. Minha gestação dura uma vida inteira. Carrego amor, o parto é eterno. Entre transtornos e felicidades: sobrevivo. Minha cama continua grande demais, meu coração cansado demais, minha vida um teatro com atores ruins demais. Um problema muito comum, uma vez que ninguém ensaia para cair no mundo. A gente sai da nossa redoma aos prantos. Nascer dói. Renascer, no entanto, é doce. Estou renascendo. Isso é bom pra caralho.

Levantou-se e saiu, assim: despetalada, exalando aquele seu cheiro louco, voando em plena tempestade, semente de si mesma, aguardando a próxima primavera.

Comentários

  1. Uau! Que belo, Jaya. Como eu disse no meu pequeno poema: ser é um ato de coragem. É isso que você brilhantemente escreveu aqui. Todos somos e devemos ser, sem qualquer script definido (ou manual). Essa é a nossa natureza. Qualquer coisa diferente disso é artificial.

    Uma ótima semana.
    Beijinhos estalados...

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  2. "É preciso que se queira com poesia"

    Ah, Jaya... Bem o sei!

    (Texto muito, muito, muito lindo como sempre! Sou grande admiradora da sua escrita!)

    Abraços e uma semana encantadora pra tu!

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  3. ai, meudeus, eu fiquei tão feliz quando vi esse texto aqui de novo. Que eu amo desde a primeira vez que li. Ele diz tanto, sabe? Tanto de tudo o que a gente carrega dia e noite. Tanto de tudo o que a gente sente nessa loucura que é viver. E diz desse seu jeito, que nem existe igual. Peguei pra mim, mais esse.

    "Um coração partido que se quebra para, na soma, multiplicar ainda mais de si."

    "Sentir continua a ser a única maneira que conheço de estar viva."

    Cara, isso é perfeito demais!

    Você é foda, minha fia!

    Um beijo, com aquele amor de sempre.

    Ty.

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  4. Muito bom este texto, meus parabéns.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  5. Sim minha pequena Jaya,
    não ha manuais, não ha remédios nenhum tipo veneno antimonotonia.
    Mas coragem, ha vida, e ha amor.
    Seu texto veio como um sopro no meu rosto,
    fazendo eu escrever bem grande no espelho:
    Renascer no entanto é doce. É bom pra caralho.
    E eu vou acreditar todos os dias que meu rosto for refletido.
    Outro abraço forte,

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  6. Não sei se já te disse isso, mas se sim, tem coisa que a gente precisa mesmo repetir: toda vez que venho aqui, em algum texto seu, é como se as palavras me devolvessem algo que eu nem sabia perdido, mas sinto encontrado aqui. E isso é bom. Alimenta o coração e dá calma pros dias...

    "Sentir continua a ser a única maneira que conheço de estar viva."

    Obrigada por me fazer sentir...
    Um beijo em cor.

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  7. Volto tantas vezes nesse texto. E SEMPRE saio sem palavras, equilibrando meu mundo em coisas frágeis e tentando ter algo nas mãos. Os olhos avistam o renascer e, como diz o próprio texto, o parto é eterno.

    Obrigada.

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