outras páginas.

(Im)possibilidades.


Pode ser que seja efêmero, João. Que no último cigarro ela não saiba mais quem você é. Pode ser que ela se apaixone, ou talvez só queira te engolir. Pode ser até que esqueça seu nome e não tenha anotado o número do seu telefone, enquanto as marcas de batom borram seu travesseiro. Pode ser que um sorriso dela caia no seu rosto, João, para disfarçar o desconforto que vai deixar enquanto você faz o café para ninguém e acabe cortando o dedo. Pode ser que o encanto seja poesia de ontem. Pode ser que não seja ela, João.

Pode ser que ela te faça sofrer. Que suba na mesa do bar e se declare para um amigo seu. Pode ser que vocês comecem voando e terminem com os joelhos ralados de tanto insistirem em seguir. Pode ser que ela te quebre um copo, João, que as verdades sejam de doer. Que você resolva ir embora. Ou que ela te peça para ir. Pode ser durante uma caminhada na praia, enquanto o sol se põe e você não encontre mais o que sentia. Pode ser que não seja eterno, João.

Pode ser que exista um ninho, uma doçura recém dolorida de estar junto. Pode ser que as personalidades se desafinem enquanto se engole uma bebida. Que o que brilhava seja ofuscado pelos cantos escuros do apartamento. Que as contas se embolem. Que vocês briguem pela bagunça na sala. Ou pior ainda, João, que vocês deixem de brigar. Pode ser que ela se canse, João, e você resolva ir até a esquina encontrar outra pessoa. Pode ser que ela encontre outra pessoa e te escreva uma carta explicando tudo o que não é mais. Pode ser que a vida estrague, João.

Pode ser no meio da festa, João, quando a música pausar em seus olhos. Pode ser que o tesão acabe e você sinta tudo congelar. Que ela borre a maquiagem enquanto um cometa rasga seus cílios. Que o seu botão descosture quando você dobrar as mangas. Pode ser que ela te abrace, João, procurando o que já não é. Pode ser que já não escutem mais o que um dia era a melodia de um dueto. Que ela sambe em outra roda, João, enquanto você resolve dormir. Pode ser que a luz acabe, João.

Pode ser pela insônia. Pelo reflexo no espelho. Ou ainda durante o sexo, quando ela fingir gozar. Pode ser que já não sejam mais quem eram e precisem se encontrar. Pode ser que ela saia de um mergulho do mar completamente despida de você. Pode ser numa epifania, no meio de um monólogo, quando você entende que tudo pode ser outra coisa. Pode ser que o sinal fique vermelho, João, e ela te ligue com saudades. E pode ser que nessa hora você já tenha outra metade. Pode ser que aconteça de novo, João.

Pode ser depois do cinema, quando ela seguir para o carro sem te dar as mãos. Pode ser pelo excesso de parágrafos mal pontuados. O almoço que ela fez e você não chegou a tempo de provar. Pode ser em qualquer cidade, João. Na sua estação preferida com um céu muito bonito, ou talvez no ponto de ônibus enquanto cai uma tempestade. Pode ser aquela palavra errada, João, que você usou na terça-feira à tarde. Pode ser que ela esteja lavando os cabelos e nunca mais sinta o seu cheiro. Pode ser que ela mude o perfume, João.

Pode ser que nada seja, João. Que o amor vire miragem. Pode ser que a vida não permita agora. Que todas as histórias se acabem. Pode ser que o poema seja falso. Pode ser que essa mulher escape, João, que nada valha a pena. Que você resolva encher a cara. Pode ser que o tédio seja imenso e você não tenha nada ao alcance dos seus braços quando o domingo acabar. E pode ser que um dia, João, sua carteira já esteja vazia quando decidir pagar para ver.


Mas o que te dá mais medo, João, do que o quê pode acontecer se tudo funcionar?

Comentários

  1. Ahh como me identifico com João, tão acostumada a dar errado, que a cada novo começo da uma frio na barriga só de pensar que agora pode funcionar. A vida vai seguindo, fazendo suas curvas e vai deixando a gente com medo de dar certo, medo de arriscar novamente.

    "Pode ser que a vida não permita agora. Que todas as histórias se acabem. Pode ser que o poema seja falso. Pode ser que essa mulher escape, João, que nada valha a pena. Que você resolva encher a cara. Pode ser que o tédio seja imenso e você não tenha nada ao alcance dos seus braços. E pode ser que um dia, João, sua carteira já esteja vazia quando resolver pagar para ver. "

    Essa parte tocou muito! Amei o texto, maravilhoso!

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  2. Que texto!


    É daqueles tão bons que você devora cada linha ansioso pra chegar logo no final e saber como que vai acabar.
    E eu ficava a leitura toda dizendo: João, é tudo! Não é uma coisa ou outra, simplesmente um emaranhado de tudo! Tudo que a gente vai juntando dentro da gente, remoendo, coisa que a gente acha que esquece mas continua no subconsciente mais do que no coração. E o que teu texto deixa é uma grande dúvida: quando acontece que a gente nunca percebe? Será que tem como saber?

    Maravilhoso, Jaya!!! Beijo

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  3. Mulher!! Que textoooooooo!

    Eu fui foi ficando sem ar. E no final, confesso que já tava com um apertozinho no coração por já ter deixado de pagar pra ver. E de quando eu paguei e nunca foi e me quebrei toda. Seu texto me trouxe lembranças. E a certeza de que é sempre melhor pagar pra ver e se quebrar toda, se for o caso. E agora eu não sei como vou fazer pra continuar trabalhando com essas coisas tudo na minha cabeça. Hahahaha.

    Nessa minha mania de relacionar seus textos com músicas, dessa vez eu li ouvindo "até o fim", de Arnaldo. Porque "se a gente não sabe se ama e não se decide que quer, a dúvida não desinflama enquanto a gente não se der, João." <3

    Te abraço toda.

    Uns beijos,
    Thay.

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  4. Pode ser tudo o nada, João.
    Gosto da tua liberdade, Jay

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  5. eu achei esse texto tão, mas tão bonito, que fiquei umas horas pensando nele. e relendo uns pedacinhos. e encontrando um pouco de joão em mim e dentro de uma história que tem um pouco de salvador e alice também...

    obrigada por essas palavras tão bonitas. precisava delas do lado de cá.
    um beijo meu!

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  6. Jaya, minha querida
    Você nasceu para tocar a alma dos seres humanos e iluminar o que esta na sombra, escondido, sem luz..

    Minha menina, a vida ensina a atravessar tempestades sem molhar os olhos...porém pagamos por isso.
    Feliz carnaval. Esse ano estarei me refazendo dos caquinhos ainda perdidos.
    Beijo, sua linda. seja feliz, é o que importa.

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  7. "Não deixe eu arrepender de um dia ter te amado, João..." (Amuleto - Tiê)

    Menina Jaya, quanto derramamento. Eu sou tão João, mas ando mesmo muito desacreditado. Que nem Caio, "quase não conseguindo enxergar mais nada bonito".
    Ainda bem que a gente tem a poesia. Nessas horas só ela acalenta.

    Te abraço.

    Wendel

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  8. Suas linhas corridas me causam uma inveja boa (existe isso? tomara que sim!). Pois eu não consigo me estender tanto sem escrever chatices.

    Gostei do nome do seu personagem, eu tenho um marcador dedicado a um João, meu preferido.


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  9. Que texto incrível, é um medinho tão suave, tão suave que nem dói tanto.

    abraço profundo,
    Sara.

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  10. Pode ser... Mas só será ou não, se você deixar acontecer, João.
    Que texto!
    Que história!
    Faz-nos enxergar o reflexo do João que fomos, somos ou poderemos vir a ser. Uma vez uma pessoa me disse que, "amar é dor, mas é tudo", quando nos dispomos a amar, nos dispomos também a sofrer por esse amor. E vale a pena? Sim, claro. O que não vale é perder a chance de amar por medo de sofrer.

    Abraço grande Jaya!

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