Do amor sem palavras.
Dispenso o silêncio e concentração. Tenho feito da noite meu dia e você não perde esse jeito todo único de se fazer sonho em minhas insônias. Aí eu fico querendo buscar uns versos muito lindos pra te entregar e acabo borrando tudo. Busco companhia nos livros, nas palavras soltas, nas letras que viram notas musicais e eu já nem sei ler mais. Fico estufada de sentimentos presos, de vontades guardadas, de um doce enjoativo, de uma acidez bem dosada, e pensando em tudo o que você não sabe. Tudo o que eu não disse. Não digo. Vou procurando me desfazer das metáforas todas. É insuportável tentar entendê-las agora. Existe um termômetro desregulado das emoções incertas que me habitam e a proporção é nenhuma. Para de olhar pra essa taça de vinho tinto e enxerga essa tempestade castanha que nasce em meus olhos. É que eu sempre achei que você entendesse meus gestos. Por exemplo, agora. Agora que eu te entranho a alma com esse meu olhar desmistificado, você não sente meu peso em si? Carrega ele com você, também. Pra mim, quero asas. Deixa o moço gritar essa MPB irritante dele pra lá. Por que será que esses cantores de barzinho escolhem o repertório mais escroto possível quando a gente sai de casa para provar de delícias? Enfim, deixa a música de lado, mais importante é a noção do meu dizer hoje, em palavras. Você sabe da minha trava em expor sentimentos. Pior seria se eu dissesse obrigada a cada vez que ouvisse um eu te amo. Não dá risada, não. Ou melhor, dá. Preciso dizer que você fica lindo quando sorri. Devia fazer isso de mostrar os dentes mais vezes. Então, como eu vinha dizendo, os gestos. Quando eu chego, por exemplo, e te abraço sem qual nem o quê, é pura necessidade de estar em casa. Você pode pensar que é porque eu gosto do cheiro do amaciante que você usa em suas roupas e isso é um dos motivos também, claro. Você precisa me dizer qual a marca, depois. Mas o motivo maior é a necessidade de me sentir viva, entende? É que nessas ocasiões meu coração aqui dentro dá sinal e eu respiro aliviada. Ah, eu quero sim outra taça de vinho. As palavras fluem melhor com essa dose de torpor. Manda esse garçom trazer a garrafa inteira. Gosto de excessos. Cansei de metades. Não, não de você, metade. Que papo brega, esse agora? Parece aquele dia em que prometemos ficar sem falar de amor. Eu perdi, claro. Uma hora depois da promessa e eu já vinha derramando no apartamento inteiro o perfume encarnado dessas paixões meio descaradas. E vem cá, por que raios você fuma tanto, hein? Apaga esse cigarro, que o quê eu quero cantar, hoje, fumaça nenhuma desenha. É puro nervosismo essa minha mão falante. Ah, não me entrega esse olhar de pesquisa, não. Tá ouvindo o barulho dos meus cadeados se abrindo? E o medo que dá de saber você me invadindo, eu não sei nem narrar. Eu nem me importo em me rasgar toda pra você. Os avessos dos meus avessos não escondem mistérios tantos assim. Minha alma espalha os segredos todos que esconde quando encontra a tua, tão desvairada quanto. Desnudas, ambas. Você sente assim? Sei que sente. Mas sei que você precisa de palavras e eu não sei entregá-las. Por isso sigo nesse ensaio, assim. Eu quero te dizer uma porção de coisas, menino. Em uma desproporção incomum, numa pose desarrazoada. Na calçada desse botequim, mesmo. Ou na cama que a gente divide naquelas horas onde já não se sabe mais quem é quem. Deixa eu dar um trago nesse cigarro? Viu? Nada na fumaça. Eu me sinto agora como quando em casa. Eu lá, sentada nas almofadas espalhadas pela sala inteira, brincando de pisar no macio por temer a certeza do chão. É bom fantasiar. E eu fico lá, torcendo cachos, roendo a mão, até que você chega e enrosca tua barba mal feita no meu rosto. Esse feito é maior que os pileques todos, em mim - a delícia de me embriagar de você. E aí eu rasgo os versos que ia vomitar e te dou o prazo de três mil horas pra parar de me beijar. Ah, droga! Olha só, derramei vinho no celular! Será que o toque vai ficar mais bacana? Como você é besta. Pronto, enxuguei. Bonita a cor do vinho no guardanapo. E eu ainda fico assim, pensando. É que eu preciso muito que você saiba... Quatro horas da manhã? Tá, vamos pra casa. Quem dirige? Deixa o carro aí, vamos caminhando, estamos perto, mesmo. E já tá quase amanhecendo. Agora que você segura minha mão... Você é tão atraentemente besta! Fica fazendo malabarismo enquanto se equilibra no paralelepípedo. Eu falei paralelepípedo, você ouviu? Você, lerdo que está, não consegue repetir. Fica aí, sorrindo, nesse atropelo de palavras. Você me faz tão bem... E o que eu mais queria era poder te contar do céu que enxergo em teu olhar e das estrelas todas que já andei pendurando nele. Sabe o que eu vejo de mim? Personagem do cinema mudo de antigamente. Expressões e gestos que dispensavam palavras. Tá que a gente como casal remete aos espectadores qualquer coisa de Almodóvar, bizarros que somos em nossa essência. Ei, me prende agora! Me pega pra você, assim, sem rodeios, encostado nessa árvore. Você tem gosto de fruta mordida e eu preciso provar todo o tempo, pra saber se você existe ou se é junção das minhas invenções. Que seja! Subimos as escadas sem nem chamar o elevador. E eu quero te dizer tanto. Fecha a porta? Me desengasgar cairia bem, agora. Largar mão dessas travas e expulsar sem poréns o resumo um tanto lúdico das nossas horas. É que você deitado aqui nessa cama, brincando com minhas mãos e me olhando sem piscar, devolve minha mudez e me faz engolir seco. Aí eu entendo o porquê de perder o som. Penso que as palavras soando no universo do teu eu, vigiado por esses olhos claros, me fazem correr o risco de cair pra dentro de você. E eu sei que vou gostar tanto, que não vou querer mais voltar. Resolvo arriscar agora, que teus olhinhos de conchas se fecharam com os brilhos das pérolas que carregam:
- Eu já amo você, menino. - digo, num sopro que te beija inteiro.