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Jaya Magalhães


Quando ela dorme em minha casa
O mundo acorda cantando...

[Zeca Baleiro/ Fausto Nilo]

Mais-que-perfeito, é o sentido. É tradução impossível do modo como meu nome minúsculo se encaixa em seus lábios. E a cada vez que ele me exala de si, num tom agridoce e vermelho, eu insisto em ter pra mim todos os ares que o furtam, para respirá-lo inteiro, num ato de egoísmo permitido - e não há quem ouse discordar.

Ele já me espera em casa e decora o som do motor do meu carro. Escuta de olhos acesos o barulho da porta que se fecha estrondosa na ausência da minha delicadeza e sorri dos meus relatórios de mais um dia de aconteceres. E eu sei que ele não está ouvindo nada. Sei que deseja me silenciar num abraço, ou algum gesto assim, que me cala, para dar vez ao coração.

Lavo as mãos, vou para a cozinha e ele insiste em me ajudar a preparar o jantar. Senta ao balcão e observa efusivamente, até que eu desmonte numa fotografia desconcertante, enquanto ele ri um riso frouxo da minha timidez latente. Então resolve comer um tomate ao passo que lê todas as minhas interrogações. Musica assobios indecifráveis e se aproxima na tentativa de ser simpático ao contar que o cheiro que as panelas fazem é delicioso.

Abre a porta da geladeira e conta os morangos. Me serve água com o copo emborcado fazendo nascer em mim uma crise de risos descontrolada. Molha toda a roupa. Veste a mim. Não resisto à minha mania de deboche e ele retruca. Reclama das minhas compras superficiais. Da minha mania exagerada de comer um vidro inteiro de azeitonas verdes e não entende minha preferência infantil por danoninho. Diz que vou ficar inchada pelo descontrole com os pães de queijo, mas não resiste à minha boca com gosto do trident de canela em tempo quase integral. Eu sorrio, por não saber outro desenho quando o tenho por perto.

Na sala, assistimos ao 007 de um tempo que já foi e em meio a absurdos, sua gargalhada indiscreta me faz acordar de qualquer índice depressivo. Eu o observo enquanto lhe dedico um cafuné sem pressa. A maneira como franze seu nariz, no menor rabisco de sorriso. O jeito de ajustar os óculos no rosto ainda que os mesmos nunca tenham saído do lugar. A inquietude das pernas, esperando pelo final do filme. Me fez aprender a amar rabugices apenas por as mesmas fazerem morada em si.

Eu fazendo história com o cheiro de terra molhada e ele sem conseguir respirar. As duas colheres de açúcar na xícara de café e eu sem beber. O modo como bate a caneta no papel esperando uma inspiração que não vem. A dúvida entre gasolina e álcool na hora de abastecer o carro. E o jeito de falar de mim, disparadamente. De enumerar meus defeitos, contar da minha mania de sorrir todo o tempo, do meu modo de arrumar os cabelos procurando um efeito que só ele enxerga e que relata detalhes do meu jeito de ser - e sempre. Fala dos meus dramas e exageros. Da minha incapacidade de gostar de azul agora e no mês que vem continuar gostando - hoje é verde. E do fato de existir amor por sorvete de flocos, sendo que, se me traz um pote, me ouve dizer: mas eu queria que fosse de cajá. Daí eu conto inexistências e berro suposições, já esperando o final, quando ele diz que, não fossem essas peculiaridades, jamais haveríamos de ser um.

O amor vira cometa, riscando o tom escuro. Nessa hora, já é noite e estrelas distraídas que nos transformamos, fazemos do mundo um olhar de céu. Tropeçamos em versos e acabamos sendo a própria poesia. Melodiada por presença, apenas.

Depois, quando o sol vem trazer bom dia, ele se levanta, marcado por lençóis, enquanto continuo na cama a enganar as horas. Escuto barulho de água caindo no chuveiro, mas a preguiça matinal não me deixa segui-lo. Ele troca de roupa, já ouvindo trilha sonora de mim, numa voz rouca de sono, desafinada em paixão, fingindo ser despertada pelo barulho das chaves do carro: ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida, já anuncias a hora da partida, sem saber mesmo o rumo que irás tomar...

E ele volta, irresistivelmente, pra mim - e porque ninguém resiste a Cartola. Volta de cabelos molhados e cheiro bom. Tempo pra mais um beijo, onde deixamos cair um pouco de vida - em par.

Vai. Pinga uma estrela em cada olho meu, e vai. Eu, ainda na janela, espio o sol a imitar seu sorriso, com os tão indiscretos raios a refleti-lo, inteiro, em meus cantos.
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Os avessos às vezes já nem sabem enxergar clareza, daí insistem em rebuscar de maneira exagerada aquilo que a poesia mostra através de sentires múltiplos. Mundos. Cheiro musicado de caminhadas por ruas que nem se sabia existir. Avelãs e uma estrada de muitas folhas. É o eterno redescobrir-se e o jamais saber-se quem. É o ato sereno de se agachar na beira da fonte de água-diamante, e bebê-la fazendo das mãos conchas entendendo estar recheando-se em pérolas que não alimentam riquezas fúteis, mas espíritos de luz. São chuvas tempestuosas que secam esperando um sol mais amarelo, e um arco-íris que se torna invisível no passar dos anos, sem você, nem eu, nunca termos escorregado nele. É época de morangos, quando se fala em amor-teu, da menina. Um quarto, cheio de riso abafado, ecoando na casa inteira. É o não saber-se só. Um ouvir de passos e o fingir-se dormindo, pelo prazer de ser envolto num cobertor de proteção. Dele. Dela. Café na porta. Uma gargalhada a anúncio, de uma criança - tantos sem-fins de clichês exorbitantes. Um enovelar de destinos. Um pecado. Um rubor. Um peito deserto, ainda com fontes de lágrimas. E uma ponte, que se faz entre mãos que se abraçam. É um temer pela brevidade do agora. E um tremer, ao chegar ao firmamento, e roubar estrelas. Depois, uma história incoerente do retorno, como se ninguém houvesse notado os rastros de pó, reluzindo em tantos pés. É (des)encontro. Doce. E leve. Levo.

Vida acaba sendo qualquer coisa assim: como o teu sonho repousando no meu.
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"Em um pulso, o sol; no outro, a lua: as mãos são feitas de céu." (J. K.)
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