- E até quando acredita o senhor
que podemos continuar
nesse ir e vir do caralho? - perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada
havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias
com as respectivas noites.
- Toda a vida - disse.
[Gabriel García Márquez, em: O amor nos tempos do cólera].
que podemos continuar
nesse ir e vir do caralho? - perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada
havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias
com as respectivas noites.
- Toda a vida - disse.
[Gabriel García Márquez, em: O amor nos tempos do cólera].
Numa prosa um tanto sinuosa, vi tua alma dançar um bolero de Gardel enquanto me fazia um apelo para segui-la. Não fui. Voltei ao apartamento num caminhar despercebido, me abraçando forte, como se nesse gesto afagasse também a parte de você que me habita. Pela rua, eu cantava baixinho, pra mim. Eu virava camaleão tentando furtar um pouco as cores de alguns sorrisos para brincar de pincelar quimeras. A lua nova ia despontando no céu e eu sorri por saber, na minha certeza, que você também a fotografava de onde estava.
Uma vez em casa, com uma xícara de chocolate quente em mãos, um blusão de propaganda me vestindo o corpo, uma alma desnuda e um rosto que me desenhava as emoções milimetricamente, passei a observar as luzes desconexas que piscavam na rua lá embaixo. Um moço tocava violão na calçada do outro lado. A namorada ouvia. A cena daria uma história bonita para uma prosa poética, mas choveu. Choveu em mim. Ninguém compreenderia, então. Sintoma de amor. A vontade era morrer, em você.
Não explico o momento impreciso com o qual o interfone me despertou de devaneios imbecis, ao te anunciar. E sentamos os dois, descalços, distantes, ao tapete da sala de estar. Sem som algum, a única música permitida era a dos nossos acordes afins. Alguns cálices de vinho e o estrago: nossas almas sendo lançadas pela boca. E tantas verdades me doendo que eu desejei ser espectadora, apenas. Quis que fossemos uma cena de filme, feita para me emocionar pela tela. É que eu nunca soube lidar com excesso de realidade.
Aturdida, te destrinchava com meu olhar mais investigativo. Teu rosto em chamas. Nas tuas janelas, vi outro de você. Qual não foi minha surpresa ao desvendar o mistério que já não tinha: o outro de você, em si, era eu. E a lucidez se desmontou com jeito de gente grande quando pensei que ainda ontem descobri que, quando me vejo sendo duas, a outra metade de mim é você, inteiro.
Fiz um soneto, então. Éramos silêncio. Um blues silencioso. Na geografia daquele momento havíamos descoberto nossos territórios. Nos tomamos pelas mãos e senti teu hálito quente me beijar o rosto. Deitamos ali, abraçados, vendo os insetos ao redor da lâmpada amarela. O bolero tocou,novamente. E eu fui. Notei que você me trouxe de volta um jeito de sorrir que havia se perdido.
Incompreensão. Medo.
Viver sempre dava nisso. Pedi que não houvesse destino pra ancorar nosso barco. Pra imitar o livro em sua beleza e por saber você, meu porto. Pensei naquela vontade de morrer, outra vez. Porque "o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso quanto mais perto da morte".