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Jaya Magalhães

Da não-escrita que se sente.

Meu ideal seria escrever uma frase tão bonita que todas as demais palavras ao redor tivessem muita vontade de fazer parte dela. Escrever um amor imenso, misturado, maluco. Escrever um amor meu. Escrever sobre as coisas doidas da vida e sobre como é fantástico arder por aí em pleno verão, fazendo até a madrugada amarelar-se.

Escrever uma história que eu encontrasse guardada na dobra da minha blusa florida, ali, já pronta. Escrever sobre o momento onde uma palavra miúda e cheia de significados embaraçou meus dedos e deu um nó em minha língua. Seria escrever a necessidade de um beijo sorridente e o porquê de meus lábios se descosturarem quando sinto o cheiro dele em qualquer lugar.

Escrever sobre como todo mundo deveria ter pincéis e medo nenhum de se borrar porque o agora é uma tela mágica e daqui a pouco não está mais aqui. Escrever sobre as alegriazinhas que a cidade esconde e que eu nunca tinha percebido até o dia em que sentei no banco da praça e fez um vento fraquinho que abriu de uma vez só um monte de pequenas portas atrás das quais elas se escondiam.

Meu ideal seria escrever fitas e laços coloridos que amarrassem bem dentrinho de mim um tanto exagerado de sentimentos ternos que nunca se abalassem, mesmo quando as coisas feias teimassem em me fazer ficar bicuda. Escrever uma maneira de secar as lágrimas, sem deixar doer mais. Seria escrever usando uma pontuação que, uma vez borrifada, trouxesse sorrisos nesses rostos outrora tristes e murchinhos.

Escrever como é bonito sentir um carinho passeando em meu rosto e que é só assim que meus olhos passarinham: no bater de asas das pálpebras. Escrever tudo o que fica invisível quando ele se aproxima muito de mim. Escrever uma janela mágica que a cada dia que eu abrisse me mostrasse algo que meu coração precisasse muito ver para poder espalhar por aí.

Escrever, sem parecer muito boba, muito triste, muito feliz, muito apaixonada. Mas aí seria uma escrita sem vida. E eu sempre quis escrever a vida. E então meu ideal seria escrever um abraço que atravessasse o papel e pudesse ser recebido por quem deixasse cair os olhos nessas letras. Escrever uma alma-piano, que sempre se deixasse tocar com essas características incríveis que despencam em nossa frente, todo dia.

Meu ideal seria escrever o dia amanhecendo fazendo coceguinhas para levar o humor bravo embora. O dia despertando duzentas e noventa e oito razões para não querer escapar do que me faz bem. Escrever um cheirinho de neném para quando chegar em casa. Escrever sobre quando não tenho palavras e meu corpo sai falando alto demais. Escrever a gargalhada banguela dos que acabaram de chegar. E dos que já estão aqui faz tempo.

Escrever o modo como minha avó tira os óculos para limpar as lágrimas depois de uma crise de risos. Escrever a segurança que a pequena sente quando se enrola em meus braços. Escrever um acarajé no fim de tarde com elas trazendo sorrisos para os meus lábios. Escrever o tom delicado que mora na voz dos meus pedaços de gente. A rotina da cidade quente que fez meus dias mais suaves. Escrever sobre esse amor que vem de graça. E que é o mais valioso que já inventaram.

Escrever um verso para quem não aprendeu ainda a mostrar a poesia que os dentes fazem. Escrever um parafuso e outras ferramentas que servissem para ajustar o céu naqueles dias em que tudo estivesse muito feio e ele ameaçasse desabar enquanto só se precisasse de sol. Escrever uma praia de gentes azuis, cheias de simplicidade e coração.

Meu ideal seria escrever uma inspiração que vivesse de braços dados comigo e não falhasse quando eu quisesse preencher uma folha em branco. Escrever uma emoção bem feliz, daquelas indizíveis, mas que eu conseguiria dizer. Escrever uma amizade que pudesse sair de mãos dadas no primeiro dia, como quando éramos crianças. Escrever um beijo que me fez fechar os olhos e veio embora comigo, pendurado no último arrepio que tremelicou do lado de dentro.

Escrever uma preguiça cheia de cobertores e tempinho frio, enquanto dois pares sapecas de pés disputam espaço para se embolar um no outro. Escrever um jornal inteiro de notícias importantes para quem sabe sentir, contando sobre o humor das nuvens e o balanço das árvores quando a tarde vai caindo. Escrever meus braços e os dele abraçando o que não cabe.

Escrever que, apesar das teorias, eu não sei o que é o amor. Escrever que ninguém sabe, mas que esperamos que seja mesmo muito bom. E que não doa tanto assim. Escrever que espero que não estejamos nunca prontos. Porque amar é não estar pronto, é não terminar-se e começar no outro. Escrever uma realidade onde eu seria bem corajosa e entregaria meu coração sempre que essas borboletas tresloucadas viessem visitar minha garganta.

Meu ideal seria escrever essa vontade de lapidar uma palavra novinha. E que ela tivesse um cheiro doce, uns movimentos cacheados, um desenho de tracinhos finos, um formato que adequasse ao que os olhos pedissem, um significado que contasse só coisas boas. Seria escrever uma palavra que virasse um presente e que eu pudesse entregar a todo mundo.

Palavra de ser feliz.
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Inspiração levinha na crônica Meu Ideal seria Escrever, de Rubem Braga.
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