Pudesse em tudo haver ternura, seu Zé, e a vida ia
fácil. Pudesse em tudo haver amor e eu faria do mundo um imenso jardim onde em todos
os olhares brotariam apenas flores. Pudesse uma criança me desenhar, aí então
eu seria o que quisesse, pois nos pincéis dos pequenos é onde mora toda a
poesia infinita de ser. Pudesse tudo o que sinto ser muito azul, daí então eu
faria estrela em cada teto e abriria uma portinha de acesso ao paraíso, onde
toda a felicidade que existe faria morada e as pessoas todinhas aprenderiam
então a sorrir de verdade.
Pudesse a gente peneirar as lembranças, seu Zé, e as
coisas não seriam tão de doer. Mas uma dorzinha até que faz bem de vez em
quando, o senhor não acha? É porque eu penso assim: pudesse não haver lágrimas,
de onde brotariam as coisas bonitas que somos todos? A gente nasce chorando é pra
essa chuva de dentro molhar todo o adubo dessa amabilidade que os anjos
preparam quando um novo coração bate no mundo. Pudesse juntar todo esse batuque
e a gente faria um samba de amor demais.
Pudesse a gente ser sozinho no mundo, seu Zé, e
que sentido haveria em ser? Eu preciso dos olhos dele me olhando para ver o
deslumbramento acontecendo e acreditar em todas essas coisas muito encantadas.
Eu me descuido de propósito, porque é ali mesmo, nele, onde me perco. Mas me
encontro muito mais. O meu amor é passarinho, seu Zé. Corre solto por aí, já
viu infinitos quilômetros de céu, voa leve e muito docilmente, e nunca esquece
o caminho de volta. Tudo porque já fez ninho no lugar mais seguro do mundo:
dentro dele. O meu menino. Pudesse todo mundo ter um encontro bonito desse e eu
ia misturar todos os acasos para fazer deles um só destino comum e muito
mágico.
Pudesse nada nunca mudar, pai e mãe sempre viver,
vô e vó sempre dengar. Pudesse a gente enganar as saudades, seu Zé, e talvez
nunca que a gente ia ler ou contar histórias muito belas sobre sentimentos
contrariados e apressados de muita paixão. Pudesse a gente estar terminado,
completo, de onde então que ia ser tirada a doçura de estarmos sempre nos
(re)descobrindo? Pois então o senhor veja, imagine só, que eu não quero nunca
ser completa. Coisa boa na história da gente é se estufar cada vez mais de
muita vida que se vive o tempo todo. Terminar-se é aceitar que acabou, e os
dias todos são um eterno recomeçar. Recomecemos.
Pudesse eu nunca ter aprendido a escrever, seu Zé,
nem tampouco desenhar. Aí eu seria muito mais atrapalhada. É que na minha
língua as palavras dançam e se atropelam sem mira alguma na hora de saltar. Na
minha fala as palavras se perdem muito rápido em sua confusão imensa, daí então
que escrever foi a maneira que encontrei de gravá-las para alcançar o mundo,
mesmo quando eu não puder estar. E se hoje eu escrevo assim, meu já tão querido
seu Zé, é porque foi a maneira mais gentil que encontrei de abraçar muita gente
ao mesmo tempo, já que meus braços não se esticam tanto assim.
Pudesse não haver abraço, seu Zé, e meu coração
nunca que ia saber conversar. Muito tagarela quando estou amando, o caso mesmo
é que hoje, no abraço daquele moço, esse coração faz até poema.
Deixa eu ir, que ainda falta é muito a se poesiar nesse mundão imenso.
Deixa eu ir, que ainda falta é muito a se poesiar nesse mundão imenso.