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Jaya Magalhães

Mercúrio está retrógrado até o próximo dia três, lembro enquanto escuto Belchior e redescubro o prazer em um copo de cerveja numa noite abafada. Caminho pela casa, olho meus cabelos vermelhos, cacheados e muito volumosos refletidos. Sinto saudades de estar sentada ao redor de uma mesa de plástico de algum boteco ruim, brindando em voz alta desejos aleatórios que geralmente falam de amor e felicidade, alguém quebrando um copo, alguém jogando fumaça pra cima, eu me apaixonando por todo mundo ao mesmo tempo, pisando macio no caminho para o banheiro, me observando no espelho louca e anestesiada, lambendo beijos nos meus lábios. 

 

Oito meses e continuo contando, como se houvesse alguma expectativa para o depois. O depois, esse que não acha espaço para ser. Esse que tem acontecido reprisando o agora, derramando essa impressão de que estamos vivendo o mesmo longo e exaustivo dia desde que a pandemia começou. Não lembro o último filme que assisti no cinema. Nem o último abraço onde me demorei sentindo vontade de atravessar. Não me recordo no copo de quem encostei meu último brinde, nem das mãos que segurei para dançar a última música. Não sei a cor das paredes do lugar onde ecoou pela última vez a minha gargalhada. Será que tinha parede? Quase sinto o gosto de ciriguela da tua boca. E o amor? Não lembro onde deixei cair. Talvez tenha inundado alguma estrada e não sinto culpa, mergulhar é preciso. 

 

Fiz meu mapa astral completo pela primeira vez — análises minuciosas, projeções e alucinações que me empurram para esse momento aqui. Escrita e delírio e uma dificuldade tão grande de pisar no mundo real que estaciono no meio da rua. Só dou partida novamente se houver alguma combinação compulsiva e ilógica na próxima esquina. Amar não me mata mais, mudei os verbos. Vivo de amor, por tudo. Sou perturbada, uma face a cada verso, consigo fazer você acreditar no que eu quiser usando apenas poesia. Não me amola que acabo parindo uma invenção tão gostosa quanto o sabor da minha língua, enquanto você sente vontade de tragar o ar que exalo ao falar teu nome, muito devagar e baixinho.

 

Diante das horas de clareza desse mês de estranha primavera, tive tempo para elaborar cotidianas suryanamaskar e aquecer meus desesperos. Antes de desabar toda a água dos últimos dias, o céu ainda me presenteou com um halo lunar. Minha alma se pôs tão desinibida diante daquele portal, que enviou pedidos atrapalhados os quais já não evoco, mas farejei possibilidades. Sou acostumada a me equilibrar no meio-fio da vida, pode buzinar que eu não me apresso. Me demoro nas escolhas: aqui dentro só cabe o que ajuda a estampar esse patchwork eterno que dá voltas e mais voltas no meu peito sempre aberto. Sou livre, se você me vir cambaleando é puro charme.

 

Não me segura, cariño. Eu não caio. Na sua.

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Acho que foi naquele dia, naquela festa, quando você estava em pé no círculo de algumas pessoas e eu te olhava de longe. Você falava, afirmava e concluía suas inúmeras certezas enquanto eu percebia que a grande maioria te ouvia desatenta e, como se já soubessem que não valia o cansaço, não ousavam te contrariar. Foi por essa época que comecei a achar muito mais fantástico olhar para os meus pés. Nesse dia bebi um pouco mais e terminei a noite dançando, sem saber o que estava fazendo ali. Em outros tempos teríamos fugido para algum lugar escondido onde eu levantaria o meu vestido e você abriria sua calça, reaparecendo depois os dois suados de muito amor.

 

Teve outro dia, no churrasco, quando você estava bêbado e começou a falar sobre política com aquela propriedade de quem nunca abriu um livro de sociologia, de quem se afoga em fontes duvidosas e vomita dados incertos. Falava cada vez mais alto, como se o poder de convencimento aumentasse junto ao tom da sua voz. Afastada, soprei um sorriso desconfortável e fui procurar a pontinha da varanda onde dava para ver o mar. Eu já era triste. 

 

Teve eu te explicando as coisas falando baixinho durante conversas com conhecidos e você replicando a eles em voz alta, como se minhas palavras fossem uma conclusão sua. E minha naturalidade em me fingir de boba só para que você se acalmasse me definindo alguma coisa óbvia. Teve o dia a dia, onde elucidei sobre muitas coisas sem deixar você perceber. Eu te moldava com malabarismos sutis. Teve a primeira vez que fomos à praia e você não entendeu que eu queria ficar sentada olhando o mar e sentindo o sol, brigamos. Todas as vezes em que fomos à praia, brigamos. Hoje é muito claro que você nunca gostou. De praia. De mim talvez sim.

 

Teve o período depois de alguns meses onde todo o labor doméstico ficava nas minhas costas e o tesão foi sendo jogado no lixo. Teve então, como era esperado, o instante muito dolorido onde você me tocava e eu já não sentia nada acordar. Teve aquela noite em que discutimos e você quebrou aos murros um aparelho eletrodoméstico. Chorei de medo pela primeira vez. Teve (mais) outra situação difícil de aceitar, era fim de tarde, arrumei minhas malas, mas o desequilíbrio emocional me fez passar mal no chuveiro. Você me abraçou e eu fiquei, mais uma vez, impondo uma condição abusiva que você aceitou, me ajudando a entender o quanto aquele relacionamento já estava doente.

 

Teve que você começou a viajar quando finalmente consegui me fixar. Percebi como era melhor sozinha. Teve meu apoio incondicional a todos os seus voos e uma melancolia ao notar que nada em mim empolgava você a ser assim comigo também. E teve a primeira vez onde confrontei você de verdade, mostrando os limites das escolhas e sendo muito clara em não admitir aquela cegueira diante do fascismo que perigava ser imposto socialmente. 

 

Teve que eu já não fazia mais questão nenhuma de dividir os meus anseios e sonhos com você. Vislumbrei com clareza a distância dos nossos mundos. Tentava me apegar a um amor que nunca existiu, via as idealizações serem desconstruídas na minha pele. Teve você me colocando de pé quando nem sentada eu conseguia ficar, mas mesmo ali você não entendeu nada. Nem quis. Não teve curiosidade em se rasgar comigo e ver o que poderia ser mudado já que eu sangrava com a fratura totalmente exposta. Cicatrizei sozinha.

 

Teve então que fui crescendo. Eu te dizia: estou mudando. E dizia feliz. E isso te assustava. Você, João, antecipou seus passos. Preciso sair disso antes que ela saia. Enlouqueceu diante da minha mais completa serenidade pós-caos. Fez suas planilhas de análise, justificando para si mesmo os seus motivos disfuncionais. Teve o seu pavor em ser direto, até o último momento. Tive que puxar seus braços, abrir sua boca, te fazer falar. Eu queria a verdade: eu não quero mais você. Eu não quero mais fazer isso aqui. Eu não sinto mais como eu sentia. Mas tudo o que vinha era: não sei. E quem sabe, João? Eu. Eu sabia. Eu sempre soube.

 

Teve que não era para ser mesmo enquanto foi. Teve que nunca deu certo. Que você só me machucava, desde o comecinho. Que você conseguiu chorar olhando fundo nos meus olhos, fazendo promessas mentirosas que flagrei em seguida. E fiquei. Talvez porque a distância tirava tudo o que doía do meu alcance, enquanto eu comia as fantasias que criei sozinha. Teve a convivência diária mostrando que às vezes até dava para ser normal, caso eu pisasse em ovos o dia inteiro. Teve uma parceria onde quem sempre abriu mão e tentou e acrescentou e acreditou e quis insistir um pouco mais, fui eu. Teve que a decisão de sinalar o fim, no fim, foi minha. Cheguei já sabendo que viria embora. Não consegui chorar nem dramatizar tanto assim, mas tentei.  Me desculpe.

 

Fecho os olhos e não lembro de nada relacionado àquilo. Sinto minha força em deixar para trás aquele apartamento com tudo o que construímos juntos. Pouco, mas compartilhado. As minhas malas feitas, todo o resto pode ser teu, porque nada que já te pertenceu consegue conversar comigo. Quando o modo automático desativou, eu estava no avião, em cima do mar, cercada de azul, decidida. Como nunca antes.

 

Teve que dois meses depois ponderei: era muito tirar você da minha vida de uma vez? Teve mensagens e e-mails mostrando um arrependimento que só saiu escrito, porque era falso. E uma conversa onde pensei: acho que é possível reformar tudo e começar do zero. Mas você era o mesmo. Você é o mesmo. Foram anos para entender que ninguém muda. E apesar daquelas transformações pontuais, você nunca bastou para mim. Daí teve a nitidez da minha voz de choro ao telefone e você irônico me dizendo: mas não foi você quem disse que estava forte? Lembra o que eu te disse, João? “Ser forte é ter emoções.”

 

Teve um dia onde lembrei nós dois deitados no escuro, quando decretei que se existisse um ponto final, você nunca mais me veria, nem me ouviria, nem teria notícias sobre mim. Porque me conheço. E você retrucou que eu não sabia de nada, nem sequer havia passado por um relacionamento assim. Fiquei quieta. Tudo acabou ali. Deixei você dormir na mesma cama. Passei a noite em claro enquanto você roncava. O sexo do dia anterior tinha sido o pior da minha vida, mas você gozou. Aí chegamos ao dia seguinte, João, onde pedi que me deixasse sozinha em casa. Você saiu. Não teve abraço. Nem beijo. Nenhum olhar. Algumas horas depois, bati a porta, desci as escadas, peguei o primeiro avião. Pousada, joguei as chaves pela janela do carro. Nunca mais eu abriria algo que me mostrasse você do outro lado.

 

Não consigo lembrar de nada bonito que você me entregou, além dos meus próprios textos, porque foram escritos por mim. Às vezes ainda menciono seu nome ao citar exemplos de coisas que não se deve reproduzir. Me apaixonei de novo depois que você passou, por alguém que me fez sentir meu coração saudável mais uma vez. Pulsa bonito, não fala mais a sua língua.

 

Aí, João, teve noite passada. Você em meio a um pesadelo. Acordei assustada e senti com alívio: não me afeta no presente. Resolvi escrever para te contar. Tudo o que você não sabe, eu sei. Sempre soube. Só não sei mais como é seu rosto, nem a paisagem que eu observava todo dia pela janela da sala, muito menos de qual lado fica aquela falha na sua barba e a pinta no seu olho. Minha memória já perdeu até mesmo o número do seu telefone. Vai fazer um ano, João. Um ano que voltei. A ser.

 

Parabéns! A mim. E obrigada, por nada.

 

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