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Jaya Magalhães

Era o começo dessa pandemia mundial e minha primeira saída para um lugar público desde que as coisas mudaram. Lembro que entrei na sala e sentei de frente para você. Usávamos máscaras. Você estava lendo aquele livro de Aldous Huxley que eu havia acabado de comprar e isso foi o suficiente para despertar minha atenção. Sempre sou a única nas salas de espera com um livro nas mãos — todos preferem o celular. Mas você não. Você lia concentrado e desviou seu foco para me sorrir com os olhos e responder ao meu bom dia. Passei a encarar meu all star branco um pouco sujo enquanto tentava imaginar como seria seu rosto. 

            

Me chamaram pelo nome a fim de terminar o preenchimento da ficha de atendimento. Você me observou mais uma vez, senti que acompanhava meu caminhar até a mesa. Em seguida, foi sua vez de ser chamado — para o consultório. Assim fomos apresentados. Dividíamos o mesmo dentista e talvez algum gosto em comum pela literatura. Provavelmente nunca mais nos encontraríamos, não fossem os acasos.

            

Poucos dias após, uma amiga em comum, que até então não sabíamos ter, compartilhou em sua rede social uma fotografia na qual eu estava. Você então reconheceu os meus cachos, o meu jeito de olhar e o nome diferente. Veio até mim. Contou a história e zombamos das coincidências, exceto pelo fato de que, naquele dia, você estava aqui apenas visitando a família. Um acidente doméstico na piscina fez quebrar a pontinha do seu dente e o seu socorro foi nosso alívio. Passamos a conversar instantaneamente, durante horas. Seu rosto debaixo da máscara era ainda mais delicado e gentil do que imaginei. Nossas sensações foram ganhando nomes e proximidades — você me parecia cada vez mais bonito. De mensagens de texto para áudios, em poucas semanas estávamos abrindo chamadas de vídeos, com você acompanhando meu cotidiano de quarentena e me mostrando sua rotina de isolamento. Assistíamos juntos a filmes antes de dormir, jantávamos em par, nos encantávamos completamente distraídos. Éramos presentes, assim, cada um na sua casa. 

            

Três meses depois concordamos que era chegada a hora do primeiro encontro. Sem máscaras, com sabores e prováveis toques. Fizemos o teste da COVID-19, trocamos os resultados negativos, alugamos aquela casa na serra e fomos. Um feriado para nos prolongarmos um no outro. Uma oportunidade para criarmos as primeiras importâncias conjuntas e sentirmos o cheiro tão íntimo que o sabonete deixa em nossa pele.

            

Obviamente os receios existiam, mas todas aquelas vontades mútuas defendiam os possíveis argumentos contrários. Nos encontramos no centro, eu indo de um estado e você do outro. Cheguei antes e te esperei na varanda, aflita e festiva, com uma taça na mão esquerda e expectativas nas retinas, organizando uma playlist que pudesse acarinhar seus ouvidos. O barulho do carro na rua de terra anunciou sua presença. Você desceu e caminhou até mim ainda de máscara, me levando de volta àquele dia, na sala de espera, onde seus olhos sorridentes me disseram tudo o que foi possível naqueles escassos instantes. Te sorri de volta, passei as mãos nos cabelos e encaixei-as nos bolsos da minha calça, confusa, balançando o corpo pra frente e pra trás, sem saber onde pousar minha atenção. Você tirou a máscara, desinfetou as mãos com álcool gel e me tocou pela primeira vez, fisicamente. Voltou ao carro, pegou sua mala e caminhamos até a varanda, seu braço ao redor dos meus ombros e o meu encaixado em sua cintura. Entramos.

            

Te ofereci uma taça daquela mesma bebida e aos poucos fomos acalmando nossas ansiedades. Voltamos para a varanda enfeitada por uma cerca viva de buganvílias e ficamos em silêncio, no sofá, admirando um céu que nunca antes vimos tão recheado de estrelas. Você começou a fazer em mim um cafuné gostoso que te levou a procurar meus lábios. Comíamos todos aqueles beijos frescos recém-colhidos, cheios de apetite e brandura. 

            

Fui tomar um banho e você animava a cozinha no preparo de um spaghetti alla carbonara, com toques especiais secretos, receita da sua nonna. Retornei e aquele aroma de domingo tomava conta do ambiente. Abri um vinho enquanto você foi para sua ducha rápida. Quando sentamos para saborear a iguaria, você sugeriu replicarmos aquela cena clássica de Lady and the Tramp e eu agradeci por você ser tão idiota. Então você cozinhava para causar alguma impressão sem nem saber que esta é, para mim, uma das mais belas demonstrações de afeto. E você seguia me afetando.

            

Algumas horas depois fomos para o quarto. Deitamos e seguimos conversando até os primeiros ensaios do amanhecer. Dissemos sobre os nossos caminhos até ali, contabilizamos quantas vezes tivemos nossas idealizações destroçadas e prometemos não desarquivar traumas e projetá-los no que pudesse vir a partir daquelas acontecências iniciais. Adormecemos.    

            

Despertamos no começo da tarde, amassados e famintos — um do outro. Você me olhava como se tudo aquilo fosse uma descoberta muito importante. Me olhava devagar, como se estivesse pesquisando o melhor jeito de me fotografar para guardar no seu depois. Após aquele contorcionismo em par, você suavemente deixou-se em mim. Nossas pupilas dilatadas denunciavam alguma forma de amor, pois nada diferente disso seria anunciado com todo aquele afã. Descansamos os batimentos observando o quarto rodeado de verde encher-se de devaneios pós-pertencimento. Você e eu e uns primeiros pingos de chuva lá fora. 

            

Parecia um sonho e eu esperava que você me convidasse para fugir. Tudo, absolutamente, para me dar motivo e coragem suficientes para não voltar à realidade do mundo atual. Quando encontrei você, eu só queria ir embora de mim, amor.


Me pede pra ficar.

            

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