outras páginas.

Declaração.

Para o moço do carrinho de pipocas.

Fazia frio e ele deve ter percebido minha tentativa de embrulhar as mãos com as mangas do casaco. Ou meu olhar perdido, enxergando tudo e nada. Parei ao seu lado por alguns segundos na dúvida sobre qual caminho seguir. A dúvida era só pose, eu penso agora, porque qualquer caminho daria em nada. Parei debaixo da árvore triste, quando ele me disse:

- Uma pipoca por um sonho, menina.

Eu olhei. Meus olhos castanhos estavam nublados, mas souberam brilhar ao notá-lo sorrindo. Recebi o pacote e falei um desconcertante obrigada, moço. Não aceitou minha moeda. Refleti acerca de suas palavras e percebi que ele talvez houvesse escutado uma lágrima chorosa no meio da minha desorganização. Pedira um sonho. Dei um aceno tímido com as mãos, enquanto ele atendia dois meninos de risada banguela. Me sorriu outra vez.

- A vida é bonita, criança! - foi a frase gritada enquanto eu me afastava. Dei meia volta e o encarei. Precisava que ele fizesse leitura do meu sorriso, que dizia assim:

Eu declaro ser boba, moço. E ingênua. Forte, apesar da pose de quem se desmonta fácil. Apaixonada, talvez. Ridícula. Medrosa. Procrastinadora de atos urgentes e também dos desimportantes. Sou uma saudade e um banco de praça coberto por folhas secas de um outono que não é meu. Não tenho paciência para conversas tristes. Posar de vítima soa deprimente. E não entendo como meu rosto se desmancha numa seriedade obtusa assim, de repente, gerando interrogações de quem me cerca. Eles não entendem. Sabe, moço, não é todo dia que eu quero sorrir, não. E pensar que já houve uma época onde isso era o meu melhor, era o que fazia as pessoas pedirem por mim. Hoje não tem ninguém. A distância é algo estúpido, moço. Não falo nem de geografia, aqui. Falo de interposições criadas por conveniências minhas. Eu sou ostra, viu? E não sei permitir que no meu lado de dentro venha morar qualquer coisa que não seja pérola. Nem é pretensão, não. Pode ser comodismo. É que eu me acostumei a ter as melhores pessoas do mundo como parte de mim e isso era o suficiente. Eu não dava importância para o novo, o desconhecido. Não sei se você entende, moço, mas dá um trabalho danado se reconhecer nos outros, querer pra si, driblar os defeitos, contar dos seus, todas essas coisas que surgem em primeiras relações. Eu queria que já viesse tudo pronto, moço. Queria. Aí eu era completa, então.

Declaro, também, que esse era é algo que nunca foi. É que eu sou sozinha, em qualquer canto. Sei lá, eu acho graça, você não? Sou dona de um sarcasmo estonteante, digo. As pessoas às vezes acham que estão acompanhadas no mundo e se apegam a isso de uma maneira que me assusta. É que, moço, todo mundo vai embora um dia. Vai porque quer, vai porque Deus chama - não importa. E eu sempre tive muito medo disso, mas quase não penso. Outro dia mesmo eu quis casar, ter filhos e ver como a vida ia. Hoje eu não quero mais. Amanhã, vou querer tudo de novo. E pra sempre. Odeio querer as coisas pra sempre, moço, você não? Tudo é tão efêmero por aqui. Tem horas que eu fico lembrando do que eu nunca soube. Você deve estar se perguntando se eu sou feliz, não é? Eu digo que não sei. Digo que sou. Num descuido ou em outro, acabo sendo. Ah, eu sou incoerente, também. Semana passada contei por aí que eu sou uma fraude. Sou tanta coisa, moço. E nada. Essa história de não poder olhar pro lado e encontrar uma gargalhada cúmplice, já não tem graça. E os fins de semana, moço, passam lentos como se fossem um filme ruim demorando pra terminar. Não pensa que eu tô só reclamando, não. É que hoje não entreguei sorriso, sabe? E agora que ele se mostra, vai despejando tudo o que esse céu nublado diz. Sou uma nuvem de chuva, agora.

Declaro ainda, moço, que eu tenho sonhos. Eles escorrem em mim inteira. Mas acontece que sou uma insônia e os dias viram duas noites. Tá faltando cor. Cinza é cor, moço? Acho bom eu ir embora, antes que tudo chova. Prometo novos sonhos. Um resgate dos que se perderam. Toma moço, esse sorriso. Coloca ele de enfeite no teu carrinho azul. Lembra que você foi responsável por mim, hoje, nesse entardecer. Lembra, moço, que meu sorrir é quem fala, porque eu não sei lidar com palavras, não.

Declaro por fim, moço, que eu vou ser feliz. Criança...


E fui.
____________________

[Numa tarde de um início de maio].

Comentários

  1. Voltei, moça.
    Hoje assisti um filme, vou parafraseá-lo. Permites?
    Declaro, moça, que "quando sonho, não sou eu"...


    Ósculos!

    [Viu? Até usei exclamação...]

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  2. Declaro que adoro seus textos. Que eles tem muito da Kakau.


    beijos
    =***

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  3. "Sou uma saudade, e um banco de praça coberto por folhas secas de um outono que não é meu."

    Minha nossa, parece-me que anos se passaram até que pudesse sentir esse frio na minha barriga, meus olhos embotados e essa alegria quase triste de te ler novamente.
    Senti muito a tua falta, meu amor. Parece-me tão...nublada. Mas eu te quero assim, quero-te de qualquer maneira, porque toda você é linda...principalmente teus lados obscuros.
    Adoro você, frô!rs
    Me abandona não, tá?



    PS. Adorei as coisas novas no blog!;)

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  4. E o dia mais uma vez foi salvo graças ao moço do carrinho de pipocas.

    Palmas para o moço.

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  5. E acho que já vi essa mocinha antes! ^^

    Adoro pensar na sabedoria disfarçada das crianças, na ingenuidade exacerbada que esconde uma personagem tal qual essa mocinha do texto.

    E o moço do carrinho de pipocas foi quem serviu de estopim para a revelação da menina...

    Muito bom Jayaaammmm!

    Adoro passar por cá!
    Beijo grande e saudades 'docê'!

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  6. E eu já li esse aqui, correto? Reconheci um ou dois ou quase todos os parágrafos. Jaya, Uau. Vários 'Uau'. Só que dessa vez eu vou imprimir e guardar. Pode?
    Abraços.

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  7. Flooor!
    Desculpe o sumiço, tô cheiiiaaaaa de trabalhos da faculdade e sem tempo pra net...
    Como vc tá?
    Amei o texto, lembrei daquele clipe dos Los Hermanos, Primavera.

    Um beijo!Postei lá...
    Aos poucos tô voltando, rsrs.

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  8. Seria tão bom se todos tivéssemos um homem do carinho de pipocas...
    Tão doce e tão lindo...
    Hoje, quem se viu no texto fui eu... É, me vi um pouco em algumas frases... Já pensei que sou uma fraude, já acordei sem querer sorrir...

    E moça, eu não tenho medo da morte, se foi o que pareceu o texto, mas é que eu não gosto da saudade que ela deixa... Aperta, sabe? E o pior é não poder acabar com ela...

    Beijãoo pra tu

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  9. Moça que coisa linda e infitamente amorosa...

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  10. Também não sou muito boa de palavras, não. Gosto de sorrisos e olhares, e eles dizem por si só. às vezes, o silêncio também. Sorrir, não todo dia. Mas isso não quer dizer que eu recuse oferecer um sorriso, quando requisitado.

    Também quero as pipocas desse moço.

    beijos, frô!

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  11. sabe quando c lê um texto e fica sem ar?
    sem oxigênio,não consegue respirar como se respirando muita coisa pode passar despercebida...
    adoro aqui,adoro teus textos..parabéns...

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  12. Muito (muito!) bom!!!!!
    Há tempos não encontrava essa qualidade de palavras.
    Parabéns, menina.
    Beijucas

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  13. Eu já conhecia esse! Primeira vez que li, fiquei pensando no moço do carrinho de pipoca. Reler, foi ainda melhor, Jayazinha. Dessa vez, pensei na menina. Em mim. Você. Em tudo. E nos sonhos.

    Aqueles todos que a gente vai trazer pra perto. Estrelas que a gente apontará pra dizer: Você, vai ser real agora. Igual a Ni escreveu. rsrs! [li lá e vim pra cá. nem teve como não juntar os dois]

    Beeeejo Baianinha predileta! =)

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  14. Jaya,

    liricamente dizendo, você escreve maravilhosamente bem. e, livre assim, faz ser o leitor também.

    letras que dão forma àquilo que não sai, às vezes...

    maravilhoso.


    abraços,
    miss demoiselle

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  15. me declaro aqui, com ao menos, metade dessas palavras. com sua licença, copiei. mas citei os devidos e merecidos créditos é claro!

    permita-me: vc foi perfeita aqui!

    tebeijobeibe :*

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  16. oi jaya. olha, não é por puxa saquismo não, mas vou repetir o que disse no outro comment, não há segunda melhor do que essas com seus textos. e pra melhorar, ainda ganho um comentário lá no blog.

    e eu gostei tanto que depois de ler o último texto, voltei pra ler o 'verbalizando' de novo, e de novo li como se fosse a primeira vez. é lindo. eu sinto as frases tão intensas que tenho vontade de escrever em um lugar que eu leia todo dia, sabe?

    eu gostaria muito de prolongar a conversa com você, sinto que tem muito a me falar, e eu, que estou perdida nesse vai-não-vai, sente-não-sente, gosto de escutar as pessoas que sabem o que dizem.

    você é de sp?

    e o pipoqueiro...bom, deus queira que ele saiba das coisas. porque me vejo nas suas palavras, sonhando um pouco nos primeiros minutos da minha segunda feira.

    beijo, querida!

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  17. Jaya!!

    Estava com tantas saudades!
    A música tem tudo a ver! É assim mesmo...
    Mas esse fim-de-semana o encanto foi se perdendo, um pouco, sabe?
    Acho que caiu na mesmice. Descobri que é assim com todas, não sou nem um pouquinho única. Chato!

    Jaya...
    esse seu texto é o melhor! O mais você, do pouco que te conheço.
    E tão lindo, tão verdadeiro...

    E um tanto de mim também.
    Que sinceramente, eu também não entendo por completo.

    Um beijo!!!

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  18. U-a-u.

    Perdi as palavras. Não sei o que comentar. Mas... UAU, Jaya. UAU.

    É lindo, triste, doce, encantador... Perfeito.

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  19. "Eu sou ostra, viu? E não sei permitir que no meu lado de dentro venha morar qualquer coisa que não seja pérola. Nem é pretensão, não. Pode ser comodismo. É que eu me acostumei a ter as melhores pessoas do mundo como parte de mim, e isso era o suficiente."

    Você me faz viajar...
    Minha pessoinha perola...

    Beijo e mais beijos...

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  20. Essa história daria um belo livro.
    É interessante com as palavras que você escreve conseguem se ajustar a cenas em minha mente. Voce me faz ver cenas, pessoas, cores. É algo inevitável.

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  21. Muito lindo,viu?
    Parabéns!Amo o que você posta aqui.

    Beijocas Jaya!




    P.S.:Linkei o seu blog.

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  22. Não sabe lidar com palavras, Jaya?
    Feliz é o pipoqueiro!
    Bjoooooooooo!!!!!!!!!!!!

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  23. Gostei. E nem é preciso dizer mais nada!

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  24. ah que texto lindo lindo! *-*
    adorei o blog, mesmo mesmo. vou linkar tá?!
    beeijo *:

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  25. - Ooi.
    (meu "oi" só* pra você.)

    Perdoa-me a ausência aparente. Estou à espreita a te olhar apenas, ainda que distante.
    Quero ficar quietinha, apenas porque tudo que me brota das mãos não se acaba num instante e não sei dividir o que ainda não se estabaleceu; ou falar/escrever das coisas todas pra uma pessoa só*.

    Uma palavra só*:
    Saudade.
    Saudade, Jaya.


    p.s. a pura vontade de me revelar sempre (e de uma vez) pra você.

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