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Bença


Chegar em frente às grades do muro baixo e não enxergar seu vulto através da porta de vidro, sentado no sofá branco, para em seguida levantar-se e abri-la com alguma frase engraçada pendurada nos lábios, me pedindo a bença enquanto me abençoava com o olhar embaçado de carinho. Entrar e sentir seu cheiro. Olhar para o quintal e quase tocar no eco dos seus passos. Encontrar seu relógio em cima da cadeira, sentar no sofá da sala de televisão e não te ver na outra ponta, sacudindo as pernas, uma em cima da outra. Sentar na sua poltrona, me deixar escorregar, achar um papel que você dobrou e enfiou no cantinho, olhar para a cozinha e não te ver sentado à mesa me oferecendo a mesma fruta que você comia. Respirar fundo encarando aquela foto minha e sua, conseguir te ouvir mais uma vez, falando muito claramente: e a boniteza daqueles dois ali? Ir embora por não suportar o barulho ensurdecedor do silêncio que sua ausência faz. Chorar.

Acordar e chorar. Fazer tudo sentindo você. Deitar, adiar o sono e chorar até adormecer. Atender aos telefonemas e contar da sua partida. Chorar em todos. Passar uma manhã na gráfica encarando sua fotografia e ensinando a moça a deixar aquele pedaço de papel tão leve quanto sempre senti sua alma. Escrever algum trecho bonito, porque vó pediu. Escolher um trecho da Bíblia, porque vó pediu. Tentar fazer por ela tudo o que ninguém poderia, só você. Receber abraços e chorar em todos. Ver o rosto de vó desmontando aos poucos numa expressão que eu não sabia que ele era capaz de ter. Não me olhar no espelho por semanas. Emagrecer. Esquecer como sorrir de verdade.

Ir embora. Dormir de exaustão e encontrar você no sonho. O primeiro após aquela semana onde vivi suspensa. Nós dois no hospital, como foi durante absolutamente todos os dias naquela última semana. Nós dois, eu me despedindo, mas você se levantando com algum esforço e me dizendo: vem cá dar um abraço no véi antes de ir. Despertar chorando pelo excesso de presença e pelo transtorno ao cair na realidade, junto à certeza de que essa mesma presença nunca mais vai existir. Não aqui. Não nessa matéria. Rezar, misturando crenças e ao mesmo tempo sem crença alguma. Reviver todos os dias o nosso último dia juntos, quando penteei seus cabelos e você, preocupado, já não disse: tem que arrumar os cachos. Mas eu disse. E você sorriu. Me despedi dizendo que o amanhã seria melhor e pensando em comprar uma mini árvore de Natal para enfeitar aquele quarto branco. Não teve amanhã, você foi embora de madrugada, após passar os últimos instantes fazendo declarações de amor e contando sobre nós todos. Lúcido. Amando. O amor não morre e você em mim só cresce.

Conversar com você em voz alta pelo apartamento, sozinha, acreditando que você escuta. Lembrar da minha meninice a seu lado. Lembrar da gente dançando valsa na minha formatura da quarta série. Lembrar de você poucos dias antes falando para os meus tios que eu era o seu xodó. Lembrar das minhas fotos de infância que você guardava dentro da Bíblia. Lembrar que toda vez que entrava no táxi sua primeira pergunta ao motorista era: quantos anos você me dá? E ninguém dizia que você tinha noventa. E você ficava envaidecido. Era a pessoa mais feliz do mundo por tê-los, mesmo ficando assustado ao entender que a despedida de tudo estava cada vez mais junto. Se eu fosse um dia pintar uma tela expondo tanta vantagem em estar acordado e gastando a vida, seria uma pintura sua.

Voltar em casa por semanas, ir na sua casa, dormir com vó, caminhar para o quarto e sentir o coração doer forte por não ter a companhia da sua voz me dizendo: já vai? Então tá. Sonha mais eu. Passar a noite em claro, sentindo tudo pesar. Ir ao cemitério pela primeira vez depois de você. Lembrar que as últimas vezes em que pisei num cemitério estava com você, várias rosas vermelhas nas mãos, distribuindo nos túmulos dos seus pais e irmão. Rezar, conversar com você ali, debaixo da sombra daquela mangueira. Sentir que você não está ali. Sentir que você está em mim. Dias depois, no meio de um café da tarde, olhar a cadeira em minha frente e ter uma crise de choro. Levantar e esconder o rosto pra vó não me ver assim. Sorrir. Doer. Ligar pra vó, já longe de novo, e travar a voz que já ia saltando para perguntar sobre você. Porque não tem mais você.

Lembrar. Doer. Chorar. Sorrir. Estar com meus irmãos e vó na cozinha, nas últimas semanas, e contar uma, duas, três histórias suas. Sorrir. Feliz. Chorar de sorrir. Chorar e sorrir. Lembrar que foi rápido, que você não sofreu além. Lembrar que um dia existiu o melhor avô de todos os universos e entre tantas pessoas possíveis, fui eu a escolhida para vir como sua neta. Agradecer. E depois agradecer de novo. Lembrar do nosso apego. Do nosso carinho. Das nossas fotografias. Do seu suco. Da rapadura. De você escolhendo uma fruta na feira enquanto falava com todo mundo, tão querido que sempre será. De você voltando para casa com uma sacola de pão todo fim de tarde. Do jeito muito sério. Do jeito muito menino. Dos seus assobios. Da mania de falar uma bobagem e dar risada batendo as mãos nas pernas enquanto jogava a cabeça para trás. Do tom a mais que montava na sua voz ao me apresentar como sua neta. Do carinho que é derramado em mim pelas pessoas que, ainda hoje, descobrem que sou neta de seu Arthur. Da sua felicidade cantando o bingo na sua festa de noventa anos. De te elogiar quando você cortava o cabelo e de você gostar que eu percebesse isso me perguntando se estava parecendo cerôto (ser outro). Das suas histórias sempre recheadas do tanto de ontem acumulado. De ser você a pessoa com mais ontens e tempos que eu já conheci até então. 

Lembrar que não esqueço nunca de te amar, vô. Um amor assim, que só está. Que não sabe para onde ir, porque nunca quis deixar de encontrá-lo. Acostumou. Um amor que é seu, desde quando eu fazia maria-chiquinha nos teus cabelos, muito menina, até nos últimos tempos, onde te levava nas suas consultas médicas e me via sempre a mesma criança encantada pelo moço de cabelos de algodão. Meu vô Tuzim. Vovô Arthur. Vô. Seu Arthur, meu.

Você foi a primeira pessoa que vi partir daqui. O lugar mais bonito onde já senti. E só hoje, há um mês de completar três anos desde aquela data, consigo colocar em palavras todos esses sintomas de amor eterno. Existe. Somos prova. Só duvida quem ainda não chegou.

Bença, vô.

Comentários

  1. eu vim correndo ontem assim que você falou. li fazendo pausas pra chorar, porque embaçava os olhos. quando terminei, desliguei tudo e fiquei deitada na cama, sentindo e lembrando.

    lembrando lá do nosso começo quando eu entendi muito rápido o amor de vocês. lembrando como ele sempre fez parte da nossa amizade, das conversas, das histórias. de como ele sempre foi parte essencial de tudo o que te completa. lembrando da sua mensagem me pedindo para rezar por ele, naquela semana. Rezei. Todos os dias. e da mensagem uns dias depois dizendo que ele partiu. e uma foto tirada do céu no momento em que ele foi morar lá. Ainda tenho a foto. lembrando de mim, sentada na cama, no quarto escuro chorando como se ele fosse meu também. porque era. lembrando da vontade de pegar um avião e correr pra te abraçar. lembrando de ficar preocupada com você, mas não poder fazer muita coisa. lembrando de rezar por você, pelos seus irmãos, pela sua vó. de rezar muito pela sua vó. lembrando da mensagem uns dias depois contando detalhadamente os dias daquela semana. e eu nunca vi uma mensagem com tanto sentimento. e lembrei dos nossos planos pra viajar e que eu parei e pensei no quanto ia ser importante te ver, depois de tudo. e eu vi. inteira, linda, mais forte e você do que nunca.

    eu carrego muitas faltas, você sabe. e eu sei que o que nos ajuda a aguentar os dias é o amor que fica. e você é e sempre vai ser cheia dele. De Tuza e de amor.

    esse é um dos textos mais lindos que eu já li na vida. porque ele é leve e é cheio desse sentimento bonito que seu vô espalhava por aí.

    beijo meu,

    Ty.

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  2. Jaya querida,
    Primeiro contato que eu tive com a morte foi do meu pai.
    Eu era muito menina, foi muito difícil entender.
    O amor sempre falou mais alto na minha vida e foi exatamente por ele
    que entendi que a vida era eterna, a saudade idem.
    ADEUS = A-DEUS:Não é uma despedida, é entregar nas mãos de Deus aquilo que você não pode mais cuidar. Eu sei que ele esta em boas mãos. E seu avó também.
    Lindo seu texto. Me emocionei. Saudade gostosa de quem não esta aqui fisicamente, mas pra sempre dentro da gente.
    beijo procê, e uma noite de luz e paz

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  3. Ei, Jaya. Sou sua colega no curso de Escrita Afetuosa. Vim aqui depressa ler e não esperava vivenciar exatamente o que a Ana falou na aula que acabei de assistir. Estou aqui ainda chorando porque em cada trecho me vi na casa dos meus avós. Vi meu amado avô na poltrona, assentado à mesa de lanche relembrando seu passado, trazendo da rua frutas e verduras pra vovó fazer o almoço. Eu me vi chegando em sua casa e, assim, como você, pedindo a bênção a ele, que sei que ainda recebo, após 20 anos de sua partida, de onde ele está. Obrigada por compartilhar sua saudade, que se encontrou aqui com a minha. Abraço.

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    1. Gleise,

      Foi bastante emotiva para mim essa escrita. Tive que parar algumas vezes para chorar. Mês que vem faz três anos e até aquele momento do texto, eu não tinha parado pra escrever sequer uma linha sobre isso. Fico muito feliz em saber que temos memórias parecidas de muito amor, e que apesar do choro, você conseguiu revisitar esses lugares bonitos. A saudade nunca passa, mas fica menos pesada de sentir.

      Se você quiser compartilhar seu texto depois, ficarei contente em poder ler.

      Um abraço.

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