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Jaya Magalhães

Pode haver o que está dependendo

de um pequeno momento puro de amor.


(Da maior importância - Caetano Veloso)


Que você tenha uma rede colorida ou um chão de natureza para descansar do que se é enquanto sonha lugares e pessoas solares. Que tenha ao alcance uma bebida que desça melodiosa para meditar a respeito de si mesmo enquanto toca alguma música que te faça criar planos tão importantes quanto ajudar um passarinho machucado a voar novamente. Que nas reuniões de família as crianças te convidem a sentar-se com elas porque você continua não sendo adulto mesmo depois dos trinta. Que você se interesse até pelo óbvio desinteressantíssimo de alguém, a ponto de apaixonar-se — e se a sorte for amiga, que você consiga colecionar motivos a cada novo dia em que estiver. Que exista uma cozinha onde as panelas sejam guiadas por mãos de amparo e todo o afeto seja intuitivamente o tempero do que alimenta. Que seu silêncio seja ouvido por quem sabe dar voz aos balões enquanto lê os quadrinhos. Que sua fala goste de deitar no colo de pelo menos uma pessoa que saiba nadar no oceano que é você.

 

Que pelo menos uma vez você seja recepcionado por um cachorro que dê voltas a seu redor, pule no seu colo e preencha de lambidas seu rosto, enquanto o rabo inaugura um carnaval eletrizante que só sua presença produz. Que você seja alegoria em tantos corações quantos forem possíveis, mesmo que já tenham sambado no seu algumas vezes, deixando apenas marcas e nenhum confete. Que sempre exista alguém para ajudá-lo a atravessar alguma rua difícil de um dia escuro. Que você possa estar numa casa onde moram vários antigamentes e te seja permitido dormir no sofá mesmo em meio ao barulho de muitas vozes reunidas, porque são sons que te acariciam sem censura alguma. Que quando alguém que você ama partir deste mundo/ de alguma história, você descubra dentro em si caminhos para (re)encontrá-lo/ deixá-lo ir. Que tudo em você um dia rime com alguém.  

 

Que você tenha pelo menos um irmão, de sangue ou de costura da vida, que te ajude a resgatar memórias daquelas com cheiro e som de amor. Que quando as horas forem tristes você permita doer, latejar, rasgar e, acima de tudo, sentir — sem, todavia, esquecer a estrada por onde retornar. Que no final de um dia estranho você tenha uma cama com lençóis recém-trocados e um aroma de amaciante que te lembre o abraço da sua mãe. Que você não passe pela vida sem conhecer o amor, em todas as suas projeções e desconstruções. Que quando você cair em alguém, que seja do modo mais violentamente belo e gentil possível — mas que seja ainda melhor quando cair em si. Que por algum acaso te encontre distraído um olhar aceso capaz de balançar todos os seus alicerces, e te faça dançar. Que seus pulmões respirem árvores inteiras.

 

Que seu nome pinte lábios saborosos que combinem com seu gosto. Que você pronuncie, ao longo dos anos, palavras cada vez mais parecidas com o vento que sopra na beira-mar e te assanha os cabelos e o sorriso. Que as pequenas coisas te interessem muito. Que você não precise fugir para ser feliz. Que não se sinta sozinho ao redor de muitas pessoas. Que esteja na melhor companhia possível ao estar consigo mesmo. Que os poemas te enxerguem por dentro enquanto você se deixar revelar em versos. Que de vez em quando apareça alguém te oferecendo o seu chocolate preferido. Que você entenda que nunca é tarde demais para chegar e aprenda que, quando o lado de dentro apontar, qualquer hora é a melhor para ir embora. Que você seja a primeira escolha em todas as suas escolhas. Que as palavras sejam aconchego enquanto o abraço ainda está pela estrada.

 

É da maior importância que esse dengo te alcance, como um cafuné. Encosta aqui. 

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Sentada numa poltrona confortável, ela desenhava num quadro os fios de memória que me levaram àquele instante: o instante de estar naquele consultório, pela primeira vez abrindo todas partes de mim diante de uma pessoa que nunca havia encontrado antes. Ela ajeitava os óculos enquanto me oferecia um lenço para conter o transbordamento inevitável das minhas lágrimas e da minha alma machucada. 

Meu diagnóstico veio aos trinta e dois anos. Antes de recebê-lo eu já tinha certeza, mesmo sem nunca ter sentido a vida com tamanha força e derramamento. Sempre achei que era mais uma fase, que o tempo consertaria, que as horas amansariam, que passaria — e de fato, passa, mas pode ser mais leve enquanto não acontece. Não tem cura. Não faz cerimônias, simplesmente chega. Não pede licença. Todavia, está longe de ser indomável. E foi aos trinta e dois que, vivendo uma vulnerabilidade enfática, resolvi enfrentá-la.

 

Desde criança eu já roía as unhas, não gostava de ser o centro das atenções, não gostava de comemorar meu aniversário e me dava um silêncio muito grande estar em meio a multidões. Diziam ser timidez e eu repetia: sou tímida — menos com os meus. Pré-adolescente, não mudou nada. Uma vez tivemos que falar na sala de aula, na frente de todo mundo, sobre o livro que havíamos lido. Adoeci. Passei uma noite em claro chorando, faltei aula, até que a professora, fingindo ter esquecido de mim, me pediu, num rompante, para contar minha história. Pode ficar sentada no seu lugar, não precisa vir aqui na frente. As palavras sumiram da minha boca e meus olhos encheram d’água. Meus colegas não entenderam. Minha melhor amiga apresentou seu livro com a maior desenvoltura enquanto eu não parava de sacudir as pernas. É porquê ela é tímida, justificavam. E eu voltava a meu lugar de conforto. A essa altura, já sem unhas e com os cantos dos dedos feridos.

 

Mudei de estado, escola nova, amigos novos, professores novos. A socialização foi imediata. Vieram os seminários, toda sexta-feira. No começo, treinava falando para o espelho, suava frio na hora do sorteio e acabava falando tudo com muita pressa, só para que o pesadelo acabasse logo. Meses depois, eu e uma amiga disputávamos para ver quem seria a primeira a apresentar. Falava tranquila, sentia que estava dentro de uma nova família. Era bonito, éramos cúmplices. 


Um dia chegou a transição para o ensino médio.

 

Quase todos os meus colegas estavam fazendo cursinho para prestar o vestibulinho da federal que eu nem sequer sabia que existia. Obviamente comecei a ouvir as lendas cheias de referências àquele novo lugar para onde todos estavam ansiosos para ir. Era certo que sairíamos daquela escola, pois o grau máximo era o que estávamos cursando. Eles se movimentavam e eu evitava pensar no assunto até que, em casa, minha mãe, professora, trouxe o assunto. Perguntou se eu queria fazer o curso, respondi que não. Eu não queria antecipar nenhuma das possibilidades de despedida. Saiu o esperado (não por mim) edital, li o livro que estava na lista, li a gramática inteira e fugi da matemática, como sempre. Tratava aquela prova como se fosse nada, enquanto o assunto era cada vez mais foco na sala de aula. Próximo ao dia, as coisas mudaram. Na noite anterior? Não dormi. Fiz as questões com o maior cansaço do mundo. O resultado: passei.

 

Aconteceu tudo muito rápido. Lembro que faltei toda a primeira semana por ter viajado e quando voltei ainda estavam todos na rotina de apresentação da escola, metodologias etc. O CEFET era realmente a maior e mais bem organizada escola que já vi, até hoje. Pavilhões separados, quadras cobertas, campo, piscina, laboratórios, auditório, jardim, ônibus para excursões etc. Lembro de caminhar assustada pelos corredores, sem encontrar ninguém que eu conhecesse dentre as quatro turmas de primeiro ano. Nenhum dos meus amigos tinha conseguido. Tive febre nos dias seguintes, chorava, não queria estudar naquele lugar. Um curto estágio depois, foi ficando mais fácil. Ali estava outra família. Estudamos juntos por três anos e tive a oportunidade de conhecer algumas das pessoas mais fantásticas do mundo — algumas delas são até hoje minhas amigas. E minha melhor amiga também foi dali que saiu. A ansiedade com os seminários? Existiram, mas aos poucos tudo se transformou num processo natural. 


Acabou o terceiro ano.  

 

Vestibular, escolher onde morar, escolher o que estudar, insegurança, pressão. E enfim, faculdade. Que processo estranho! Lá estava eu, novamente a mais nova, como sempre foi em todas as vezes que entrei numa sala de aula. Ali tive a oportunidade de conviver com pessoas extremamente diferentes. Pessoas com idades próximas, pessoas com a idade dos meus pais, pessoas quase com a idade dos meus avós. Não viramos família: muita gente era passageira, muita gente era interesseira e muita gente conseguia pisar em cima de outras gentes. Discussões aconteciam ao redor. Briga de egos, o tempo inteiro. Fiz pouquíssimas amizades e celebrei quando tudo teve fim. Não sem antes quase surtar, obviamente, e viver meses de insônia elaborando uma monografia, trocando as horas, dormindo no chão em cima dos livros (literalmente), sendo perfeccionista e… Na hora de abrir o arquivo da apresentação, o power point havia sido salvo apenas pela metade. Não dava tempo de ir em casa, chovia torrencialmente, ruas estavam alagadas e senti que meu mundo acabaria ali. A vontade foi de sentar no chão abraçada a uma garrafa de tequila e chorar. Ocorreu que todo o nervosismo de todos os anos anteriores montou nas minhas costas, apresentei sem norte, falando o mais rápido que podia. No fim, fui aprovada com mérito — o que desencadeou num choro coletivo meu e da banca avaliadora.

 

Formado em Direito, seu diploma só é socialmente validado se você vence a etapa da prova da OAB, ainda que não queira advogar. Novamente: insônia. Dessa vez com vômitos ocasionais e falta de apetite em tempo integral. Depois de passar na primeira fase, fui para a segunda e reprovei — não consegui terminar a prova a tempo. O que me levou, conforme a regra da época, a refazer a primeira fase. Passei, de novo. Na segunda, obviamente com todas as consequências de sempre, sentei e não consegui ler a prova. Como assim eu não conseguia ler? Levantei, passando mal, e fui para o banheiro. Em seguida fui embora pra casa. Uma sensação de impotência tomando conta do meu corpo inteiro. Chorei por horas seguidas e no dia seguinte acordei decidida a procurar ajuda. Procurei. Novamente: faz a primeira fase, passa e vai para a segunda. Fiz a prova tão calma que parecia outra pessoa. O resultado? Aprovada. Abandonei a ajuda em seguida.

 

Os anos passavam e as datas e acontecimentos significantes — e às vezes nem tão significantes assim — quase não eram vivenciados quando ocorriam, tamanha era a exaustão física e mental, típica de quem vive a antecipação e analisa absolutamente todos os minutos do futuro, como se tivesse o poder de prever o que poderá acontecer, em todas as suas maneiras. Insônia, suar frio, sacudir as pernas, lábios ressecados, respiração irregular, náuseas e enjoos. Falta de apetite ou apetite extremo. Gastrite nervosa. Pensar em sair de casa e desistir com medo de sentir alguma coisa e atrapalhar alguém. Sintomas que vez ou outra me acometiam e eu não entendia direito o motivo. Os diagnósticos apareciam e a solução nunca. Os dias pediam uma versão de mim que havia sido perdida dentro do emaranhado de emoções. Era gigante minha preocupação com o depois e impossível estar presente no agora. 

 

De outro lado, vivia um relacionamento com uma pessoa que piorava minha situação de todas as maneiras possíveis. Emagreci, as olheiras aumentaram, chorava como nunca havia chorado. Às vezes dava para respirar, então eu era machucada outra vez e meu coração rachado despejava em mim toda essa dor incrivelmente orgânica. Eu tinha que ouvir, todas (todas) as vezes, o quanto era dramática e como gostava de passar os dias procurando motivos para me sentir mal. 

 

Após lidar a vida inteira com episódios que sempre foram amenizados por mim mesma, acumulou-se numa sequência: problemas no relacionamento, TCC da pós, morte de um familiar que era uma parte enorme de mim, Bolsonaro eleito, ataques ao meu irmão etc. etc. Tive a primeira crise real, quase palpável de tão terrível. Defino como as semanas mais pesadas que já vivenciei. Começou nas madrugadas, quase silenciosamente: acordava no meio da noite com calafrios e respiração ofegante. Não conseguia voltar a dormir e passava o dia com a sensação de aperto no peito. Fui ao médico, neurologista, o primeiro onde consegui vaga. Passou um remédio que, além de não ajudar, me deixava com uma ressaca bastante potente. Parei de tomar e fui piorando. Acatando uma sugestão, fiz algumas sessões de acupuntura. Comecei a dormir melhor e a respirar sem sentir o mundo doer tanto assim. Me abraçava um desânimo tão grande, não conseguia enxergar possibilidade em nada, não conseguia sair, não conseguia andar, ficava sentada ou deitada, queimava incensos, tentava meditar. E nada. Tentava comer e não conseguia engolir. Emagreci cinco quilos em sete dias. Saía da cama, deitava no sofá. E nada. 

 

No ápice do transtorno, sozinha em casa, achei que fosse desmaiar. Não conseguiria ir sozinha ao hospital. O então namorado, talvez certo de que era apenas um drama, foi para o trabalho. Eu em casa, sem forças para conseguir sequer ir ao banheiro. Insisti. Liguei diversas vezes até ele me priorizar, mesmo com alguma irritação. No hospital, tomei soro e remédios para enjoo. Fiz exames e voltei pra casa pelo menos hidratada. Chorei. Muito. Um dia inteiro. Sem pausas. Ficava cansada, respirava e voltava a chorar outra vez. Ele me olhava com olhos assustados e mesmo me dizendo que ia ficar tudo bem, eu sabia que ele não sabia se ficaria. O medo era real. Me pedia pra reagir, sem entender que isso era tudo o que eu mais queria. Eu tentava. Era só o que eu queria: ficar bem. Ser eu. Inteira.

 

Diante do caos, foram me socorrer. Fui na acupuntura, fiz massagem, fui ao psiquiatra. Tive a sorte de encontrar um profissional bastante delicado, atencioso, preocupado com todos os movimentos que aconteceram/aconteciam/aconteceriam. Medicação e recomendações receitadas,  benefícios viriam lá pelo final do mês. Demorou um pouco até conseguirmos regular as dosagens, mas descobri posteriormente ter sido mais rápido do que acontece para a maioria das pessoas. Vim embora. Não poderia ficar lá sozinha e em casa as demais terapias seriam mais fáceis de serem trabalhadas.

 

Voltei a fazer acupuntura regularmente, o que me garantia automaticamente boas horas de sono e relaxamento. Encontrei, no mesmo local, uma psicóloga que já no primeiro encontro acolheu todas as minhas questões, muitas vezes me explicando para mim mesma e me ajudando a enxergar todos os caminhos: os que escolhi, os que foram inevitáveis, os que precisavam ser abandonados e as diversas possibilidades por onde seguir a partir daquele instante. Eu ia crescendo e era bonito sentir. 

 

Obviamente, em meio a tantas análises, as situações dentro daquele relacionamento foram aparecendo. Comentei com ele como estava sendo bom olhar para dentro de mim, me colocar do avesso sem censuras e saber o que poderia ser costurado e o que era melhor rasgar de uma vez. Falei como estava mudando, como estava ficando forte. Como estava me recuperando para mim mesma. Ele interpretou como quis e achou que eu estava caminhando para encerrar aquele namoro. Fechou-se em si mesmo. Me machucou de maneiras inimagináveis, me dizendo palavras que até hoje não entendi, me deixando plantada por dias, sendo tratada como um objeto que estava no lugar errado. Sempre existiu espaço para conversas e sempre existiu um único pedido: honestidade. Principalmente com os sentimentos. Não tem que ser eterno, mas precisa haver a tal da responsabilidade afetiva. Não houve. Doeu diferente e resolvi ir embora. Não sabia mais por onde caminhar ali dentro, conhecia todas as esquinas e nenhuma delas me parecia convidativa. Eu não podia perder o meu foco e nem ousaria arriscar me perder de mim, de novo. Queria alguém que se dispusesse, que me segurasse, que me motivasse e seguisse caminhando e sorrindo a meu lado. Ele não sabia ser essa pessoa. E mais importante: ele não queria ser essa pessoa. 

 

Na terapia, discutimos, em cima de dados, sobre como os homens não sabem lidar com a vida real, especialmente em momentos onde são chamados a adquirir instintos de cuidados. Estudos mostram que uma grande porcentagem pede divórcio ou simplesmente vai embora ao encarar a parceira pós-gestação ou vivendo algum transtorno emocional. E assim aconteceu. Oito meses de tratamento e nem todos os anos onde estive ali e segurei todas as suas piores barras (piores até que a minha) foram suficientes para que ele fizesse o mesmo por mim. Chorei dois dias, doeu três meses. Depois comecei a enxergar o que agora exponho e segui por onde o amor estava: em mim. 

 

Em menos de um ano, as sessões de terapia semanais passaram a ser quinzenais. Parei a acupuntura e comecei a ioga. Fui cercada por presenças que realmente importavam e quando dei por mim, minhas asas tinham novamente crescido e eu já conseguia enxergar novos caminhos em meio a esse tanto de céu. Me vi tão solta como nunca estive, me aproximando do meu propósito e encontrando corações dispostos a me impulsionar nessa onda preciosa de (re)descobertas.

 

Aos trinta e dois, fui diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada – TAG. Demorei uma vida inteira para aceitar, engolindo a clareza dos indícios. Demorei para entender que não conseguiria sozinha e que isso não era de maneira alguma uma coisa ruim. É uma doença e não um sentimento, precisa de cuidado. É paralisante. Se não for tratada, vai se potencializando até o momento onde você não consegue mais ser dono de si. É importante que se procure ajuda especializada e que os passos sejam acompanhados por um profissional que te faça sentir seguro dentro do seu processo. Não precisa ter vergonha, precisa ter amor. Por si mesmo.

 

Estima-se que, atualmente, 3,6% da população mundial sofra com algum transtorno de ansiedade. E segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, o Brasil é o país onde se concentra a maior parte das pessoas ansiosas do mundo. Os motivos são vários, tendo em comum o fato de sermos brasileiros e, por consequência, caminharmos em cima de todas as mazelas existentes em nosso país. Dito isto, tenho a sorte de viver em um ambiente de privilégios e de contar com o apoio de uma família que sempre está. E graças a essa sorte, hoje caminho diferente. Mais eu e menos tudo aquilo que não preciso carregar.

 

Ansiedade não tem cura. Mas aprender a olhar para si mesmo com gentileza, entendendo e aceitando ser você mesmo sua essencial fonte de cuidado, é a principal etapa para iluminar-se atento e potente. A vida vai sempre bater, porque somos sempre mais fortes. Conseguimos, pode seguir. Acredita.

 

Dá sempre tempo.
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Estar na estrada sempre foi uma rotina em minha história. Quando meus pais se separaram, eu era ainda muito menina — tanto que não levo nenhuma herança dos dois juntos. Dentre minhas escassas lembranças da primeira infância estão a de estar indo para/ voltando de alguma cidade, tendo em vista que, após a separação, minha mãe e eu mudamos de município. A memória mais antiga que tenho dessas viagens é a de estar no fusca de meu pai, bastante enjoada. Cresci viajando e dando trabalho nas estradas por conta da cinetose e ansiedade. Estávamos sempre acompanhados, eu e meu pai, ora da minha avó, ora da minha madrasta: era sempre necessária uma presença para auxiliar minhas inconstâncias. Chegar era um regozijo, mesmo sofrendo um pouco nos trajetos.

Os anos passavam e a distância continuava presente. Meu pai mudou de estado e as viagens ficaram mais longas e exaustivas. Da Bahia para Minas, parávamos para dormir na estrada, eu agora com idade suficiente para tentar me cuidar, acatando dicas para não passar mal, uma vez que a medicação sozinha nunca funcionava. Vá no banco da frente, leve um limão para cheirar, não olhe pelos vidros laterais etc. Apesar do desconforto, ter meu pai naqueles momentos só nossos, inventar brincadeiras para o tempo passar mais rápido, cantar músicas, contar histórias, dar risadas, sentir o carinho e um pouco de preocupação misturados ao maior cuidado do mundo, me fazia ter coragem e ânimo para enfrentar quaisquer percursos longos demais. Tudo aquilo marcava em mim silenciosos sintomas de amor demais.

 

A felicidade em chegar, nos últimos dias já dava espaço à tristeza, pela proximidade da hora de partir. Sempre dei um jeito de camuflar os apetrechos e colocar as roupas no meu quarto ou no guarda-roupas do lugar onde ficava hospedada. Tentava esconder todos os possíveis vestígios de efemeridade, mesmo quando vez ou outra dava de cara com a mala ou a mochila ali, me lembrando que os prazos eram curtos e abrindo pequenas rachaduras em meu coração menino. Coração esse que ainda não sabia o tamanho imenso da distância que se daria em seguida, com meu pai voltando à Bahia depois de anos, e minha mãe, comigo, cruzando o país para uma nova vida em Roraima. 

 

As viagens norte-nordeste passaram a ser de avião, mas ainda tão demoradas quanto as anteriores. Aos dez anos de idade, encarava pela primeira vez, sozinha, doze horas de viagem com conexões e esperas. Os efeitos da cinetose? Pioraram. A diferença estava no fato de que as datas para voar passaram de feriados e férias de meio do ano para apenas o período das festas/férias de final de ano. Chegava de Roraima, passava as comemorações na casa de meu pai, depois pegava estrada para visitar os parentes maternos, divididos em outras duas localidades, e voltava para o pai com o choro engasgando a proximidade do adeus. As despedidas ficavam cada vez mais difíceis. Eu chegava sozinha. Voltava sozinha, mas com a bagagem sentimental transbordando — fui aprendendo a colocar nas minhas malas todos aqueles momentos que não eram fotografados.

 

A vida foi acontecendo e me vi de volta ao encanto da minha baianidade, com parte do coração permanecendo em Boa Vista. Aproveitei o retorno e saí pelo Brasil catando abraços em alguns cantos até então desconhecidos. Reconectada de vez ao tom do meu lugar, como se não bastasse, inventei de sustentar um romance à distância que me levava quinzenalmente à capital, onde acabei me fixando — sempre com a alma acordada em peregrinações. Anos depois, Salvador virou poesia e voltei às minhas raízes. A mala o tempo todo ali, quase ao pé da minha cama, em sua pose de amuleto, aguardando a próxima rota. Entre aeroportos e rodoviárias, sempre multipliquei o que senti enquanto me dividia. Essa mala que já foi travesseiro, cadeira e mesinha de centro. Que já foi extraviada. E que nunca deixou de me preencher, a cada vez que sento no chão para esvaziá-la. Pedaços essenciais do que me compõe, ela que trouxe.

 

A minha mala me carrega. 

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Para vovó Nina, minha mãe e tia Rita.

Na casa de Nina crescemos ao redor da cozinha. É um espaço muito grande, onde cabem dois sofás, uma estante, uma máquina de costura, uma mesa de madeira muito comprida com oito cadeiras, uma geladeira, um fogão, uma pia e vários armários. Não bastasse, ainda inventaram de fazer uma extensão, com mais um fogão, uma pia, um fogão à lenha e uma despensa. A família é grande, são seis filhos. Um desses filhos é justamente minha mãe, motivo pelo qual tive o prazer de, junto a meus montes de primos, vivenciar um movimento típico de um acúmulo de amor com todas as suas desconstruções. Nós sorrimos muito, nos abraçamos e nos beijamos mais ainda, temos piadas internas e códigos, fofocamos sem desejarmos mal a quase ninguém, falamos alto, brindamos por qualquer motivo, brigamos por quase nada e aos domingos, aqueles onde conseguimos reunir todo mundo, exaltamos sem precisar de palavras a sorte de sermos fluxos do sangue de dona Nina e seu Maneca.

A cozinha é lugar dos encontros todos. A campainha toca e atravessamos a casa inteira para alcançar aquele canto que tem sempre um cheiro por onde nos guiarmos. Ali eu observava, ainda menina, a mágica sendo feita entre panelas e misturas de aromas. Pelo olfato, aprendi a adivinhar o que estaria na mesa algumas horas depois. Enquanto observava, às vezes recebia tarefas, como buscar um ou dois pedaços de lenha no fundo do quintal, manusear a máquina de moer carne e também a de café, lavar os pratos, lamber as tigelas ou provar os primeiros pedaços de algo que seria servido em seguida. Eu só via vantagem, principalmente quando surgia no caminho algum prato especial e eram tirados de dentro do armário os antigos cadernos de receitas.

 

Com folhas amareladas, letras diferentes, páginas despencando, colagens de revistas e embalagens de leite condensado/ creme de leite, tudo ali se conectava. Sentia como se estivesse diante de um antigo mapa do tesouro. Tesouro esse rico de feitiços palatáveis, símbolo de um poder matriarcal capaz de atravessar gerações e fogões servidos de histórias sempre bem alimentadas. Folheando o caderno até encontrar a receita escolhida, passava os olhos e imaginava o gosto que teriam aquelas junções. Ao cair no título procurado, chegava minha vez de auxiliar, enchendo xícaras, procurando ingredientes, fotografando as mãos que iam em direção ao próximo passo, tatuando de farinha, massa, calda ou molho, aquele papel encharcado de memórias.

 

Penso agora que esses cadernos foram algumas das primeiras coisas que li. Geralmente vó, tia ou mãe pediam para buscá-lo na gaveta. Dependendo da ocasião, estavam juntas as três. Se fosse uma festa, estariam ali outras mulheres parentes e amigas, reunidas na intenção de multiplicar as receitas e acelerar os processos. As vozes misturadas entre risadas e muita conversa preenchiam minhas expectativas enquanto as fornadas iniciais incendiavam a casa com uma fragrância quase sagrada. Quando não era oferecida a pontinha de algo para provar, às vezes fazíamos (eu e meus primos) malabarismos para furtar despercebidamente. Nem sempre funcionava. Pegos em flagrante, fugíamos a base de gritos e ameaças enquanto gargalhávamos sem medo algum, prontos para repetirmos tudo dali há alguns instantes.

 

Com o tempo aprendi eu mesma a cozinhar. As primeiras receitas foram os doces. De tanto observar como se moviam as mãos cozinheiras ao meu redor, aprendi a fazer bolos que eram muito apreciados. Passei a ousar sobremesas, deixei minhas marcas nas anotações que tínhamos em casa. Às vezes voltava na cozinha de Nina, copiava algumas receitas para mim, conversava em pé acompanhando seus passos para entender a real ciência daquele molho de tomate mais delicioso do mundo, como fazer para deixar o arroz soltinho, como alcançar o ponto certo do vatapá. Nunca comi nada seu sem sentir já na primeira garfada que por ela havia sido feito. Hoje em dia, nos meus retornos ali, corto temperos, preparo saladas, volto no tempo quando a fumaça sobe ao redor. De vez em quando gruda em algum lugar o cheiro da cozinha de minha mãe, que nunca foi assim tão diferente. Respiro mais fácil aos domingos por conta de todo o ar que recheou meu estômago ao longo dos anos, deixando louca a anatomia dos órgãos. 

 

Nos tempos atuais, já entendendo a cozinha como um dos jeitos mais bonitos de fazer poesia, consigo reprisar em minhas panelas os temperos das panelas de dona Nina, minha avó. Toda vez que meu fogão trabalha, me aqueço ao senti-las — ela, minha mãe e minha tia. As mulheres em quem tanto me espelho. Que me alimentam. Que me prepararam. Por causa delas, hoje sinto que amor é também comida. Coração vazio não voa, prova só um pouquinho.

 

Vê aqui se tá bom assim.

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Nunca escrevi como profissão. Nunca tive prazos para publicar textos como parte do meu cotidiano. Escrever sempre foi um respiro e me acontece, continuadamente, num processo muito natural. Não tenho pautas a serem cumpridas: o tema corre para as pontas dos dedos a depender do que meu peito sente naquele momento. Às vezes sento para começar a compor algo que tenho inteiro pronto na mente, mas durante a redação desenvolve-se delicadamente mutável. Às vezes me proponho uma rotina e consigo aplicá-la torcendo palavras com muito esforço, uma vez que aprendi a não depender da inspiração. Começar um texto é quase como tentar acertar o buraquinho da agulha: quando a primeira frase consegue atravessar, dando o tom dos passos seguintes, o bordado de palavras dança. É como segurar nas mãos da coragem para atravessar uma ponte muito alta: concentra-se no caminhar. Transposta, basta sentar e apreciar o encontro. Escrever é travessia. 

Também às vezes, escrevo o que me pesa. Outras vezes, o que me acende. E apesar de me colocar em cada letra que pinto, mais de noventa por cento do que escorre é fictício. Porque escrever é principalmente trilhar novos caminhos a cada parágrafo, ainda que todo eles acabem tendo como bússola o mesmo coração. 

 

Há alguns anos a distração da escrita ficou um pouco mais séria. Acabei dentro de um livro, preenchido inteiro com palavras minhas, evento que nunca sonhei ou imaginei ser capaz de, mas que quando dei por mim, já estava sendo. Foi um susto que aos poucos começou a me assombrar. Com o exemplar em mãos, não conseguia reler. Passei a duvidar das minhas análises que atingiam níveis agora ilógicos de perfeccionismo, de modo que os dias passavam e a tela em branco do computador era evitada. Durante longos anos, produzi um texto para cada ano. Inventava desculpas para não tocar nesse inevitável embate comigo mesma. Acontece que, quando a escrita nasce na gente — pode até haver alguma briga—, a reconciliação é inevitável.

 

Voltei a escrever. Nos últimos meses, sem preocupações ou rituais. Solto as palavras para, em seguida, num exercício passionalmente artesanal,  lapidar parágrafos, aparar arestas, embalar tudo com essa preciosidade de quem se vê entregando parte do que se é. Com muito barulho ao redor ou no mais profundo silêncio. A necessidade de esvaziar-se é poderosa — ao mesmo tempo preencho-me de mim mesma. Nada mais corajoso que escrever (-se).

 

A palavra sempre me terapeuta.

 

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Chegar em frente às grades do muro baixo e não enxergar seu vulto através da porta de vidro, sentado no sofá branco, para em seguida levantar-se e abri-la com alguma frase engraçada pendurada nos lábios, me pedindo a bença enquanto me abençoava com o olhar embaçado de carinho. Entrar e sentir seu cheiro. Olhar para o quintal e quase tocar no eco dos seus passos. Encontrar seu relógio em cima da cadeira, sentar no sofá da sala de televisão e não te ver na outra ponta, sacudindo as pernas, uma em cima da outra. Sentar na sua poltrona, me deixar escorregar, achar um papel que você dobrou e enfiou no cantinho, olhar para a cozinha e não te ver sentado à mesa me oferecendo a mesma fruta que você comia. Respirar fundo encarando aquela foto minha e sua, conseguir te ouvir mais uma vez, falando muito claramente: e a boniteza daqueles dois ali? Ir embora por não suportar o barulho ensurdecedor do silêncio que sua ausência faz. Chorar.

Acordar e chorar. Fazer tudo sentindo você. Deitar, adiar o sono e chorar até adormecer. Atender aos telefonemas e contar da sua partida. Chorar em todos. Passar uma manhã na gráfica encarando sua fotografia e ensinando a moça a deixar aquele pedaço de papel tão leve quanto sempre senti sua alma. Escrever algum trecho bonito, porque vó pediu. Escolher um trecho da Bíblia, porque vó pediu. Tentar fazer por ela tudo o que ninguém poderia, só você. Receber abraços e chorar em todos. Ver o rosto de vó desmontando aos poucos numa expressão que eu não sabia que ele era capaz de ter. Não me olhar no espelho por semanas. Emagrecer. Esquecer como sorrir de verdade.

Ir embora. Dormir de exaustão e encontrar você no sonho. O primeiro após aquela semana onde vivi suspensa. Nós dois no hospital, como foi durante absolutamente todos os dias naquela última semana. Nós dois, eu me despedindo, mas você se levantando com algum esforço e me dizendo: vem cá dar um abraço no véi antes de ir. Despertar chorando pelo excesso de presença e pelo transtorno ao cair na realidade, junto à certeza de que essa mesma presença nunca mais vai existir. Não aqui. Não nessa matéria. Rezar, misturando crenças e ao mesmo tempo sem crença alguma. Reviver todos os dias o nosso último dia juntos, quando penteei seus cabelos e você, preocupado, já não disse: tem que arrumar os cachos. Mas eu disse. E você sorriu. Me despedi dizendo que o amanhã seria melhor e pensando em comprar uma mini árvore de Natal para enfeitar aquele quarto branco. Não teve amanhã, você foi embora de madrugada, após passar os últimos instantes fazendo declarações de amor e contando sobre nós todos. Lúcido. Amando. O amor não morre e você em mim só cresce.

Conversar com você em voz alta pelo apartamento, sozinha, acreditando que você escuta. Lembrar da minha meninice a seu lado. Lembrar da gente dançando valsa na minha formatura da quarta série. Lembrar de você poucos dias antes falando para os meus tios que eu era o seu xodó. Lembrar das minhas fotos de infância que você guardava dentro da Bíblia. Lembrar que toda vez que entrava no táxi sua primeira pergunta ao motorista era: quantos anos você me dá? E ninguém dizia que você tinha noventa. E você ficava envaidecido. Era a pessoa mais feliz do mundo por tê-los, mesmo ficando assustado ao entender que a despedida de tudo estava cada vez mais junto. Se eu fosse um dia pintar uma tela expondo tanta vantagem em estar acordado e gastando a vida, seria uma pintura sua.

Voltar em casa por semanas, ir na sua casa, dormir com vó, caminhar para o quarto e sentir o coração doer forte por não ter a companhia da sua voz me dizendo: já vai? Então tá. Sonha mais eu. Passar a noite em claro, sentindo tudo pesar. Ir ao cemitério pela primeira vez depois de você. Lembrar que as últimas vezes em que pisei num cemitério estava com você, várias rosas vermelhas nas mãos, distribuindo nos túmulos dos seus pais e irmão. Rezar, conversar com você ali, debaixo da sombra daquela mangueira. Sentir que você não está ali. Sentir que você está em mim. Dias depois, no meio de um café da tarde, olhar a cadeira em minha frente e ter uma crise de choro. Levantar e esconder o rosto pra vó não me ver assim. Sorrir. Doer. Ligar pra vó, já longe de novo, e travar a voz que já ia saltando para perguntar sobre você. Porque não tem mais você.

Lembrar. Doer. Chorar. Sorrir. Estar com meus irmãos e vó na cozinha, nas últimas semanas, e contar uma, duas, três histórias suas. Sorrir. Feliz. Chorar de sorrir. Chorar e sorrir. Lembrar que foi rápido, que você não sofreu além. Lembrar que um dia existiu o melhor avô de todos os universos e entre tantas pessoas possíveis, fui eu a escolhida para vir como sua neta. Agradecer. E depois agradecer de novo. Lembrar do nosso apego. Do nosso carinho. Das nossas fotografias. Do seu suco. Da rapadura. De você escolhendo uma fruta na feira enquanto falava com todo mundo, tão querido que sempre será. De você voltando para casa com uma sacola de pão todo fim de tarde. Do jeito muito sério. Do jeito muito menino. Dos seus assobios. Da mania de falar uma bobagem e dar risada batendo as mãos nas pernas enquanto jogava a cabeça para trás. Do tom a mais que montava na sua voz ao me apresentar como sua neta. Do carinho que é derramado em mim pelas pessoas que, ainda hoje, descobrem que sou neta de seu Arthur. Da sua felicidade cantando o bingo na sua festa de noventa anos. De te elogiar quando você cortava o cabelo e de você gostar que eu percebesse isso me perguntando se estava parecendo cerôto (ser outro). Das suas histórias sempre recheadas do tanto de ontem acumulado. De ser você a pessoa com mais ontens e tempos que eu já conheci até então. 

Lembrar que não esqueço nunca de te amar, vô. Um amor assim, que só está. Que não sabe para onde ir, porque nunca quis deixar de encontrá-lo. Acostumou. Um amor que é seu, desde quando eu fazia maria-chiquinha nos teus cabelos, muito menina, até nos últimos tempos, onde te levava nas suas consultas médicas e me via sempre a mesma criança encantada pelo moço de cabelos de algodão. Meu vô Tuzim. Vovô Arthur. Vô. Seu Arthur, meu.

Você foi a primeira pessoa que vi partir daqui. O lugar mais bonito onde já senti. E só hoje, há um mês de completar três anos desde aquela data, consigo colocar em palavras todos esses sintomas de amor eterno. Existe. Somos prova. Só duvida quem ainda não chegou.

Bença, vô.
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A primeira lembrança que salta quando procuro explicar a palavra em mim, é a de estar cercada de livros, canetas, lápis, revistas, papéis e um aparelho de telefone antigo ao lado. Tudo isso na casa de vó. Não recordo a idade, mas lembro que ainda não escrevia: rabiscava folhas e mais folhas, simulando letras e preenchendo páginas em branco. Casualmente, atendia ao telefone sem linha, como se fosse uma pessoa muito ocupada, porém sem jamais desviar a atenção dos meus papéis. Esse processo às vezes durava horas — e assim eu era feliz, brincando de redigir. 

 

Me alfabetizei aos quatro anos, já então sabendo ler e escrever. Minha relação com a literatura se dava desde muito antes, mas quando fui capaz de decifrá-la, passei a entender os livros como pedaços muito mais preciosos. Era o mais novo e mais fácil jeito de passear sem precisar me levantar do sofá. Sempre encontrei em casa uma fonte de estímulo para aprender — vó, pai, mãe, todos professores. Sempre existiram prateleiras de exemplares diversos ao meu redor. Quando finalmente me vi senhora das minhas palavras, comecei a sonhar também com a minha estante, montada com as minhas escolhas. Todos os livros ganhados eram guardados numa grande pasta vermelha, naquela parte da estante que poderia ser trancada com uma chave. Era meu tesouro. Meu cuidado. Se me demoro nas recordações, consigo sentir o cheiro da madeira daquele espaço reservado para depositar meus companheiros de jornadas.

 

Novamente na casa de vó, depois de muito insistir para usar sua máquina de escrever, um dia fui atendida — agora eu já sabia o que fazer. Queria organizar tudo sozinha: rolar a página, padronizar a fita, sentir o aroma das misturas. Passei os primeiros minutos admirando as letras nos ganchos de ferro, assimilando o movimento de apertar o dedo na tecla para ver o salto até o papel. Pedi um livro para que pudesse copiar frases e alimentar a lauda. Achei complicado digitar, acabei desistindo em algum momento. Não conseguia exibir aqueles barulhos bonitos que ouvia quando alguém batia um texto inteiro. No computador era muito mais fácil, aprendi a usar os demais dedos além dos indicadores, praticando em trabalhos escolares e aplicativos de mensagens instantâneas. Todavia, ainda hoje sonho ter uma máquina de escrever.

 

Pouco depois da alfabetização, paralelamente à leitura, comecei a ser presenteada com diários. Logo dei a eles todos bastante utilidade. Todo final de ano, o primeiro item da minha lista de presentes era um diário/agenda. Assim narrei todas as minhas histórias até completar os catorze anos. A vontade de escrever ainda pulsava enquanto recebia elogios pelos textos produzidos nas aulas de redação e nas felicitações para os amigos. Descobri na Internet os blogues. Fiz o primeiro, não era divulgado, sentia como apenas uma extensão do antigo diário, acrescido de análises críticas dentro do cotidiano adolescente. Numa nova plataforma, agora aberta ao público e com novas vivências e descobertas literárias, sem nem perceber, estava escrevendo crônicas e recebendo comentários dentro de um estilo que chamavam de prosa poética. Todas as influências absorvidas iam moldando aquelas letras até que, numa publicação em outro espaço literário, alguém disse ter identificado ser meu aquele texto, já no primeiro parágrafo. Foi quando tive a sensação ilusória de ter descoberto minha própria identidade. Nunca mais parei — de escrever e de tentar descobrir.

 

Para muito além de preencher páginas em branco, escrever sempre foi um processo terapêutico. Não consigo me distanciar das letras, me coloco teimosamente em todas as pontuações. Para uma pessoa que cresceu vivenciando uma infância e adolescência bastante introvertidas, a escrita adquiriu o status de poderosa forma de comunicação. Muitos assuntos difíceis e inevitáveis de épocas importantes foram tratados por e-mails. Dos amigos de infância, guardo ainda hoje as cartas trocadas. Prefiro mandar uma mensagem escrita a atender uma ligação telefônica. Li uma vez uma entrevista de Gabriel García Márquez, a quem carinhosamente chamo de Gabo, e ele dizia: “sou escritor por causa da timidez. Minha verdadeira vocação é ser mágico, mas fico tão encabulado tentando fazer os truques que tive de me refugiar na solidão da literatura. De qualquer maneira, as duas atividades me conduziram à única coisa que me interessa desde que eu era criança: que meus amigos pudessem me amar mais.” Senti como se houvesse aberto meu coração e fotografado. Caminho por esse mesmo lugar de amor, sem nenhuma pressa, de modo que, distraída, um dia publiquei um livro. Para presentear os meus. Para poder estar, materializada, nos dias onde não posso entregar meus braços. Escrevi para abraçá-los.

 

Escrevo pela poesia e também por não saber desenhar. Porque escrevendo viro eu mesma aquarela. Escrevo para chegar, ainda que na grande maioria das vezes não saiba sequer para onde estou indo. Escrevo, sim, para que meus amigos possam me amar mais. Para ver nas palavras espelhos de mim. Para ser nas palavras o oposto de mim. Para ser. Escrevo, porque sou.

 

Escrevendo sou possível. Aconteço.

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Mercúrio está retrógrado até o próximo dia três, lembro enquanto escuto Belchior e redescubro o prazer em um copo de cerveja numa noite abafada. Caminho pela casa, olho meus cabelos vermelhos, cacheados e muito volumosos refletidos. Sinto saudades de estar sentada ao redor de uma mesa de plástico de algum boteco ruim, brindando em voz alta desejos aleatórios que geralmente falam de amor e felicidade, alguém quebrando um copo, alguém jogando fumaça pra cima, eu me apaixonando por todo mundo ao mesmo tempo, pisando macio no caminho para o banheiro, me observando no espelho louca e anestesiada, lambendo beijos nos meus lábios. 

 

Oito meses e continuo contando, como se houvesse alguma expectativa para o depois. O depois, esse que não acha espaço para ser. Esse que tem acontecido reprisando o agora, derramando essa impressão de que estamos vivendo o mesmo longo e exaustivo dia desde que a pandemia começou. Não lembro o último filme que assisti no cinema. Nem o último abraço onde me demorei sentindo vontade de atravessar. Não me recordo no copo de quem encostei meu último brinde, nem das mãos que segurei para dançar a última música. Não sei a cor das paredes do lugar onde ecoou pela última vez a minha gargalhada. Será que tinha parede? Quase sinto o gosto de ciriguela da tua boca. E o amor? Não lembro onde deixei cair. Talvez tenha inundado alguma estrada e não sinto culpa, mergulhar é preciso. 

 

Fiz meu mapa astral completo pela primeira vez — análises minuciosas, projeções e alucinações que me empurram para esse momento aqui. Escrita e delírio e uma dificuldade tão grande de pisar no mundo real que estaciono no meio da rua. Só dou partida novamente se houver alguma combinação compulsiva e ilógica na próxima esquina. Amar não me mata mais, mudei os verbos. Vivo de amor, por tudo. Sou perturbada, uma face a cada verso, consigo fazer você acreditar no que eu quiser usando apenas poesia. Não me amola que acabo parindo uma invenção tão gostosa quanto o sabor da minha língua, enquanto você sente vontade de tragar o ar que exalo ao falar teu nome, muito devagar e baixinho.

 

Diante das horas de clareza desse mês de estranha primavera, tive tempo para elaborar cotidianas suryanamaskar e aquecer meus desesperos. Antes de desabar toda a água dos últimos dias, o céu ainda me presenteou com um halo lunar. Minha alma se pôs tão desinibida diante daquele portal, que enviou pedidos atrapalhados os quais já não evoco, mas farejei possibilidades. Sou acostumada a me equilibrar no meio-fio da vida, pode buzinar que eu não me apresso. Me demoro nas escolhas: aqui dentro só cabe o que ajuda a estampar esse patchwork eterno que dá voltas e mais voltas no meu peito sempre aberto. Sou livre, se você me vir cambaleando é puro charme.

 

Não me segura, cariño. Eu não caio. Na sua.

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Acho que foi naquele dia, naquela festa, quando você estava em pé no círculo de algumas pessoas e eu te olhava de longe. Você falava, afirmava e concluía suas inúmeras certezas enquanto eu percebia que a grande maioria te ouvia desatenta e, como se já soubessem que não valia o cansaço, não ousavam te contrariar. Foi por essa época que comecei a achar muito mais fantástico olhar para os meus pés. Nesse dia bebi um pouco mais e terminei a noite dançando, sem saber o que estava fazendo ali. Em outros tempos teríamos fugido para algum lugar escondido onde eu levantaria o meu vestido e você abriria sua calça, reaparecendo depois os dois suados de muito amor.

 

Teve outro dia, no churrasco, quando você estava bêbado e começou a falar sobre política com aquela propriedade de quem nunca abriu um livro de sociologia, de quem se afoga em fontes duvidosas e vomita dados incertos. Falava cada vez mais alto, como se o poder de convencimento aumentasse junto ao tom da sua voz. Afastada, soprei um sorriso desconfortável e fui procurar a pontinha da varanda onde dava para ver o mar. Eu já era triste. 

 

Teve eu te explicando as coisas falando baixinho durante conversas com conhecidos e você replicando a eles em voz alta, como se minhas palavras fossem uma conclusão sua. E minha naturalidade em me fingir de boba só para que você se acalmasse me definindo alguma coisa óbvia. Teve o dia a dia, onde elucidei sobre muitas coisas sem deixar você perceber. Eu te moldava com malabarismos sutis. Teve a primeira vez que fomos à praia e você não entendeu que eu queria ficar sentada olhando o mar e sentindo o sol, brigamos. Todas as vezes em que fomos à praia, brigamos. Hoje é muito claro que você nunca gostou. De praia. De mim talvez sim.

 

Teve o período depois de alguns meses onde todo o labor doméstico ficava nas minhas costas e o tesão foi sendo jogado no lixo. Teve então, como era esperado, o instante muito dolorido onde você me tocava e eu já não sentia nada acordar. Teve aquela noite em que discutimos e você quebrou aos murros um aparelho eletrodoméstico. Chorei de medo pela primeira vez. Teve (mais) outra situação difícil de aceitar, era fim de tarde, arrumei minhas malas, mas o desequilíbrio emocional me fez passar mal no chuveiro. Você me abraçou e eu fiquei, mais uma vez, impondo uma condição abusiva que você aceitou, me ajudando a entender o quanto aquele relacionamento já estava doente.

 

Teve que você começou a viajar quando finalmente consegui me fixar. Percebi como era melhor sozinha. Teve meu apoio incondicional a todos os seus voos e uma melancolia ao notar que nada em mim empolgava você a ser assim comigo também. E teve a primeira vez onde confrontei você de verdade, mostrando os limites das escolhas e sendo muito clara em não admitir aquela cegueira diante do fascismo que perigava ser imposto socialmente. 

 

Teve que eu já não fazia mais questão nenhuma de dividir os meus anseios e sonhos com você. Vislumbrei com clareza a distância dos nossos mundos. Tentava me apegar a um amor que nunca existiu, via as idealizações serem desconstruídas na minha pele. Teve você me colocando de pé quando nem sentada eu conseguia ficar, mas mesmo ali você não entendeu nada. Nem quis. Não teve curiosidade em se rasgar comigo e ver o que poderia ser mudado já que eu sangrava com a fratura totalmente exposta. Cicatrizei sozinha.

 

Teve então que fui crescendo. Eu te dizia: estou mudando. E dizia feliz. E isso te assustava. Você, João, antecipou seus passos. Preciso sair disso antes que ela saia. Enlouqueceu diante da minha mais completa serenidade pós-caos. Fez suas planilhas de análise, justificando para si mesmo os seus motivos disfuncionais. Teve o seu pavor em ser direto, até o último momento. Tive que puxar seus braços, abrir sua boca, te fazer falar. Eu queria a verdade: eu não quero mais você. Eu não quero mais fazer isso aqui. Eu não sinto mais como eu sentia. Mas tudo o que vinha era: não sei. E quem sabe, João? Eu. Eu sabia. Eu sempre soube.

 

Teve que não era para ser mesmo enquanto foi. Teve que nunca deu certo. Que você só me machucava, desde o comecinho. Que você conseguiu chorar olhando fundo nos meus olhos, fazendo promessas mentirosas que flagrei em seguida. E fiquei. Talvez porque a distância tirava tudo o que doía do meu alcance, enquanto eu comia as fantasias que criei sozinha. Teve a convivência diária mostrando que às vezes até dava para ser normal, caso eu pisasse em ovos o dia inteiro. Teve uma parceria onde quem sempre abriu mão e tentou e acrescentou e acreditou e quis insistir um pouco mais, fui eu. Teve que a decisão de sinalar o fim, no fim, foi minha. Cheguei já sabendo que viria embora. Não consegui chorar nem dramatizar tanto assim, mas tentei.  Me desculpe.

 

Fecho os olhos e não lembro de nada relacionado àquilo. Sinto minha força em deixar para trás aquele apartamento com tudo o que construímos juntos. Pouco, mas compartilhado. As minhas malas feitas, todo o resto pode ser teu, porque nada que já te pertenceu consegue conversar comigo. Quando o modo automático desativou, eu estava no avião, em cima do mar, cercada de azul, decidida. Como nunca antes.

 

Teve que dois meses depois ponderei: era muito tirar você da minha vida de uma vez? Teve mensagens e e-mails mostrando um arrependimento que só saiu escrito, porque era falso. E uma conversa onde pensei: acho que é possível reformar tudo e começar do zero. Mas você era o mesmo. Você é o mesmo. Foram anos para entender que ninguém muda. E apesar daquelas transformações pontuais, você nunca bastou para mim. Daí teve a nitidez da minha voz de choro ao telefone e você irônico me dizendo: mas não foi você quem disse que estava forte? Lembra o que eu te disse, João? “Ser forte é ter emoções.”

 

Teve um dia onde lembrei nós dois deitados no escuro, quando decretei que se existisse um ponto final, você nunca mais me veria, nem me ouviria, nem teria notícias sobre mim. Porque me conheço. E você retrucou que eu não sabia de nada, nem sequer havia passado por um relacionamento assim. Fiquei quieta. Tudo acabou ali. Deixei você dormir na mesma cama. Passei a noite em claro enquanto você roncava. O sexo do dia anterior tinha sido o pior da minha vida, mas você gozou. Aí chegamos ao dia seguinte, João, onde pedi que me deixasse sozinha em casa. Você saiu. Não teve abraço. Nem beijo. Nenhum olhar. Algumas horas depois, bati a porta, desci as escadas, peguei o primeiro avião. Pousada, joguei as chaves pela janela do carro. Nunca mais eu abriria algo que me mostrasse você do outro lado.

 

Não consigo lembrar de nada bonito que você me entregou, além dos meus próprios textos, porque foram escritos por mim. Às vezes ainda menciono seu nome ao citar exemplos de coisas que não se deve reproduzir. Me apaixonei de novo depois que você passou, por alguém que me fez sentir meu coração saudável mais uma vez. Pulsa bonito, não fala mais a sua língua.

 

Aí, João, teve noite passada. Você em meio a um pesadelo. Acordei assustada e senti com alívio: não me afeta no presente. Resolvi escrever para te contar. Tudo o que você não sabe, eu sei. Sempre soube. Só não sei mais como é seu rosto, nem a paisagem que eu observava todo dia pela janela da sala, muito menos de qual lado fica aquela falha na sua barba e a pinta no seu olho. Minha memória já perdeu até mesmo o número do seu telefone. Vai fazer um ano, João. Um ano que voltei. A ser.

 

Parabéns! A mim. E obrigada, por nada.

 

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Todos os dias nas últimas semanas, quando chega o entardecer, entro no carro com minha vó, meu irmão e nosso cachorro. Fazemos o percurso até um lugar muito afastado e isolado para caminhar, tomar um pouco de sol e respirar diferente, sem nenhum teto. A intenção inicial não era nenhuma senão nos exercitarmos e absorvermos um pouco de vitamina D, nessa busca de um pouquinho de saúde dentro de um mundo que tem andado tão mais adoecido nos últimos (quase) sete meses. O que encontrei, para muito além do que precisávamos, foi um jeito novo de sentir a natureza de tudo o que existe. 

Caminhamos lado a lado e ela, em seu corpo já tão gasto de vida, desperta no meu novos ritmos. Meus passos ensaiam a dança silenciosa dos seus enquanto trocamos palavras e histórias, de máscaras, lendo apenas nossos olhares cada vez mais expressivos. Todos os dias falamos sobre os pequenos ipês recém-plantados no meio daquela avenida que começa a nascer. Alguns já florescem, amarelos e roxos. Ela sempre imagina o futuro, me dizendo da beleza que enxerga antecipadamente quando aqueles mesmos ipês estiverem imensos e coloridos, atraindo a atenção de todos os que souberem daquela vasta coleção que começa a brotar nesta pandemia. A vida não demora.

Comento sobre o nascimento da filha de uma amiga, uma gestação que não pude acompanhar de perto devido ao isolamento, mas que não me impediu de celebrar a força tão selvagem com que, em suas vezes de bicho-mulher, ela trouxe ao mundo uma pequena grande Maria. Vendo as fotografias de alguns momentos do parto, uma em especial conversou forte comigo: estava ela gritando um sorriso com sua cria no colo, os olhos apertados de tanta gratidão que transbordava, me permitindo sentir e fixar nas minhas lembranças, muito claramente, uma das mais poderosas personificações do amor. Trouxe comigo, entre lágrimas, a certeza de que milagres não são feitos de grandes gestos: é natural, muito sóbrio. Abrir os olhos é o mais cotidiano deles. Maria chegou me lembrando de não esquecer que estar vivo é festa.

Enquanto seguimos andando, eu e minha vó, olhamos muito o céu. Nosso caminho é o mesmo, todos os dias, mas agora somos sabedoras de nuvens, de vento, de lugares que o sol prefere, da cor que ele aquarela os espaços enquanto cai em cada um dos lados. Na última curva, subimos uma rua aladeirada. Percebo que diminui a velocidade dos passos e, como num presente trazido pela primavera, avança em mim um cheiro louco de jasmim. Inspiro, suspiro e simultaneamente, sem escusa, o aroma invade o lado de dentro da minha máscara. Questiono se ela também sente: pelo terceiro dia, me diz que não. Coloca em dúvida minha fala de quem já enxergou o jasmineiro do outro lado do muro — se ela não vê, estou errada. Sorrio embevecida enquanto ela descobre as flores que aparecem na mangueira isolada em meio àquele loteamento deserto. 

Na etapa final, em linha reta, o sol vai se pondo em nossa frente. Ela aponta, eu aponto, os desenhos começam. Comparamos se está mais bonito que o de ontem e questionamos se estará mais belo amanhã. Às vezes fotografo, às vezes ela reclama que não dá pra olhar direto — seus olhos azuis contrastam e se fecham. Mostro a imagem no meu telefone e ela elogia. Não sabe da nova coleção que comecei a fazer em silêncio: nossa jornada muito juntas, nossos olhares que agora olham mais parecidos, um monte de ontem que ela conta e eu guardo no colo para nomear quando chegar minha vez de contar, e um sem-fim de pores do sol. 

Na esquina encontramos meu irmão e o cachorro, exaustos. Entramos no carro. Ela reclama um cansaço e diz que não virá no dia seguinte. Sorrimos os três. Todos sabemos o pacto silencioso que percorre esse movimento diário. Voltaremos. Sentimos como ela pisa mais forte a cada dia, mostrando que viver é gastar a vida, sem perigo de esbanjar. Existe sempre troco e nós nunca contamos, preferimos juntar para esticar até quando der. E sempre dá.

Mas vó, se foi Deus que fez o céu, o que ele usou?, questionava a você meu pai, menino. Ainda não sabia a resposta naquele dia, mas agora explico: usou a mesma combinação lúdica que cabe nos teus olhos. É pelo azul que você sempre se guiou. E eu sigo.
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Quando alguém fica doente, Maria, e antes de ser curado a doença se espalha de um jeito muito rápido para outra pessoa, e mais outra, e depois mais outra, sem que algum remédio consiga controlar esse contágio e disseminação, a gente chama de pandemia. Geralmente é muito perigoso, por isso o mais indicado é que tomemos os cuidados necessários antes que tudo possa piorar ainda mais. É por isso, Maria, que temos ficado em casa há tanto tempo.

Não é todo mundo que entende, meu bem, os riscos pelos quais passaremos se desobedecermos às recomendações das pessoas que estudam dia e noite sobre esse vírus. Vírus? São coisinhas pequeninas e muito infecciosas que a gente não consegue enxergar sem o equipamento necessário. O corona é assim, um vírus, mas que apesar de miudinho causa estragos imensos. As pessoas que estudam esses vírus, Mariazinha, são os cientistas. E por isso, quando a gente procura se informar sobre remédios e maneiras de ficar bem, é nas palavras deles que devemos confiar. Muita gente vai falar sobre muitas coisas e desobedecer o que eles ensinam, mas a gente não. Porque a gente quer ver o mundo girando bonito sempre, e pra isso saúde é muito importante, não é mesmo?

Estamos em casa há seis meses, Maria. E vamos continuar até ser seguro de verdade respirarmos juntos a outras pessoas. Por isso os carinhos de vó e vô tem vindo pela tela do celular. Por isso a professora tem dado aulas para vocês ali, dentro do computador. Por isso você ainda não pode ir brincar no parque e encontrar os amigos. Por isso quando a gente sai de casa, a gente fica dentro do carro e usa máscaras, mesmo quando é pra descer rapidinho ali na farmácia. Quando a gente volta, a gente limpa o sapato e coloca as roupas pra lavar porque assim o danado do vírus não tem nenhuma chance de ficar aqui dentro, tentando deixar a gente com medo. Isso tudo porquê não queremos ficar doentes e nem ver quem a amamos adoecer também.

Mesmo que estejamos saudáveis, menininha, não podemos sair. O nome disso é quarentena. É quando é preciso ficar em casa e entender que se formos pra rua, podemos pegar o vírus (já que a gente não enxerga, lembra?) e passarmos para outras pessoas que também estão sadias. Já pensou que sensação ruim, Maria, sermos responsáveis por levar alguém ao hospital? Eu ia ficar muito triste. Sim, eu sei que você também. É verdade, Mariazinha, tem muita gente saindo, a praia estava lotada, os restaurantes e bares também, a TV acabou de mostrar. A pandemia não acabou, Maria. Lembra dos cientistas? Eles estão trabalhando direto tentando encontrar uma vacina. Enquanto isso, tudo o que eles pedem é que a gente fique em casa. As pessoas estão saindo, menininha, porquê estão um pouco cansadas e não se importam tanto assim com as outras. Talvez elas não tenham entendido direito o que está acontecendo. Isso, pode ser também que elas não tenham estudado o suficiente ou sempre desobedeceram os pais.

O presidente também está desobedecendo, Maria, sim. Mas nós não escolhemos ele naquela época de eleições, lembra? Porque já esperávamos que ele agisse assim. Não, meu bem, infelizmente ele não está ajudando ninguém. O desamparo é intenso, em todos as configurações. O Brasil anda muito desanimado desde que ele apareceu. Ele não usa máscara mesmo não, pequena. Mas ele não é cientista e nem aprendeu na escola sobre como ser uma pessoa cuidadosa. Uma pena, Mariazinha. Não, não dá pra levar o Brasil ao hospital, mas se desse, também acho que ia ter um montão de gente pra cuidar dele. Você ia poder ir, claro que sim. Apesar de tudo, Maria, para cada gesto que machuca, sempre tem alguém pra dar um beijinho e fazer um curativo. A vacina é como se fosse esse curativo, isso mesmo. Mas enquanto ela não existe, a gente toma esse tantão de cuidado. Já pensou se ferir e não ter como tratar? Ia ficar doendo um tempão.

Muita gente morreu por causa desse corona vírus, Maria, igual o vô daquela vez, foi. Dói o coração, eu lembro muito bem de nós duas dormindo juntinhas depois de falarmos que ele poderia ir em paz porque lá seria também muito bom. Mas a saudade dá mesmo um trem esquisito dentro da gente, né? Ainda bem que podemos chorar quando der vontade. E sorrir com um monte de lembrança bonita que só. Esse outro lado ninguém conhece, Mariazinha, mas esse tanto de gente teve que ir pra lá esse ano. Cada uma por um motivo, mas todas por causa do corona. Claro, pode sim fazer uma oração. Vamos acreditar, Mariazinha, que Deus vai seguir confortando todas as famílias que ficaram por aí. A primavera tá chegando e os primeiros ipês começam a brotar essas flores coloridas que não se aguentam e formam também um tapete cheio de poesia no chão. Se ao menos a gente pudesse entregar um pouco desse chão para aparar as dores de quem não consegue encontrá-lo...

Combinado então, certo? Vou deixar você guardar um pôr do sol nos olhos e entregar a dona Ana pelo portão. Não dá pra ver o sorriso com a máscara, mas ultimamente tem sido assim: o mundo inteiro nas retinas e o coração nas mãos.



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Prefiro inverno, mas gosto muito de praia. Prefiro cachorro. Prefiro ir andando. Prefiro cinema, filme legendado. Prefiro mulheres, mas infelizmente só tenho atração por homens. Prefiro boteco com mesa de plástico e cerveja trincando. Prefiro a Bahia. Prefiro ouvir. Prefiro feijoada. Prefiro chorar sozinha. Prefiro chinelos. Prefiro azul, mas vermelho me acende. Prefiro não fazer barraco. Prefiro Caetano. Prefiro ficar em casa. Prefiro a esquerda, então se você quiser, pode se retirar pela direita, tchau. Prefiro escrever, mas tenho aprendido a falar. Prefiro acarajé. Prefiro o fim tarde, o sol se pondo. Prefiro poucas pessoas. Prefiro quem inspira e me ajuda a respirar.

Prefiro quem chega devagarzinho. Prefiro sentar no chão. Prefiro escrever digitando no teclado. Prefiro conversar olhando para o céu. Prefiro assuntos de dentro. Prefiro tirar fotos sorrindo. Prefiro quem tem o riso frouxo. Prefiro a paisagem verde. Prefiro com farinha, oxe. Prefiro quem odeia Bolsonaro. Prefiro quem samba junto à minha empolgação. Prefiro quem sabe doer em silêncio tomando sorvete. Prefiro textos longos. Prefiro almoço de domingo na casa de vó. Prefiro letra, mas música é essencial. Prefiro amizades com ontens parecidos. Prefiro as exceções. Prefiro o hoje, mas ainda tenho dificuldade em vivê-lo. Prefiro o cheiro do incenso de jasmim.

 

Prefiro cozinhar a lavar os pratos. Prefiro a lasanha de Sofia. Prefiro ter esse monte de irmãos. Prefiro quebrar o pau a sentir indiferença. Prefiro meus cabelos cacheados. Prefiro que você, para mim, seja problema seu. Prefiro dançar sem coreografia. Prefiro quem abraça, muito, apertado e demorado. Prefiro ler antes de pegar no sono. Prefiro quem entende meu jeito de chegar. Prefiro quem ensina ao invés de apontar. Prefiro dormir tarde. Prefiro quem não tem frescura, mas prefiro quem entende as minhas frescuras. Prefiro suco de maracujá e pizza de pepperoni. Prefiro livro físico. Prefiro quando é de verdade. Prefiro quem me chama pra tirar um cochilo. Prefiro rezar olhando o mar. Prefiro quem explica quando discorda. Prefiro não sentir muito e sentir tudo. Prefiro quem beija com o corpo inteiro e sorri estalando os lábios nos meus.

 

Prefiro o coração das crianças menores de quatro anos ou maiores de setenta. Prefiro quem não deixa de se encantar. Prefiro quem ama como um adolescente aos dezesseis, acreditando na entrega e na eternidade do sentimento. Prefiro quem não joga e diz querovocêagora. Prefiro quem gosta da poesia que não rima. Prefiro não fazer sentido. Prefiro cantar de olhos fechados. Prefiro fazer o caminho que todo mundo não faz. Prefiro justificar com astrologia. Prefiro ioga. Prefiro quem conta todos os detalhes das histórias. Prefiro quem ri antes de contar a piada e contagia todo mundo apenas jogando alegria pra fora. Prefiro quem pergunta se tá tudo bem tirando as cortinas do questionamento. Prefiro quem não julga, mesmo quando eu julgo errado. Prefiro explodir a me despedaçar por dentro. Prefiro quem chega para trocar retalhos e (se) costurar junto. Prefiro dividir para somar.

 

Prefiro ficar feliz e acreditar que vai funcionar, igual Tiê canta. Prefiro seguir cheia de amanhã nos olhos. Prefiro amar. O amor. E prefiro ser. Eu. 

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No balanço da rede, nessa noite muito fria, resisto tentando olhar o céu. Lua cheia em Peixes e samba demais nas minhas melodias. Cinco meses de quarentena, várias estações e um inverno que me joga para essa vontade de ter você aqui, debaixo do edredom, reclamando dos meus pés que nunca esquentam enquanto te agarro e entrego todos os beijos que andei acumulando. Crio planos silenciosos imaginando toda essa sua geografia, buscando a existência de um território a ser conquistado, numa intenção abusada e anunciada de habitar um pedaço do seu mapa que ainda não desenhei, mas rascunharia cuidadosamente, com a ponta da língua e um carinho nos dedos. 

Não precisa ter medo, mordo devagar — mas se você correr não irei atrás. O que sinto é agora, daqui a pouco eu talvez não caiba mais nesta f(r)ase. Aproveita enquanto te projeto assim, enquanto ainda não cansei de repetir suas cenas. Continuo a pausar naquela parte onde você sorri e suspira um desejo de estar em mim. No excesso de cinza dos dias, suas cores me comovem. Se precisar de legenda, sinta a minha pele em braile. Tudo se explica com o toque. 

Entra aqui na minha jaqueta, aperta seu corpo no meu até que nossos hálitos se misturem, queimando essa poesia de nos fundirmos enquanto exalamos um vapor de você e eu, tão fugaz que me embaça os olhos. Atrás dessa cortina enxergo todo o não dito. Não use muitas palavras, pode se esconder nos meus cabelos. Segura a minha mão e me convida para fugir em cima de todas as horas, embaixo de intenções que leio nas suas necessidades confusas. Eu vim para complicar um pouco mais enquanto tento decifrá-lo. Meu desequilíbrio é irremediável. Sou perigosa, mantenha-se perto. 

Estamos trancados e loucos. Desaprendi meus jeitos de chegar, mas pode me desabotoar. No meu relicário algum achado pode refletir você. Me pega com cuidado e vê se não me deixa exposta. Me dê uma utilidade inevitável. Os próximos passos não precisam deixar marcas, imagina se a gente voa? Faz frio e eu resisto, tentando olhar o céu. Você aqui e talvez o verão caiba nas próximas horas. 

Meus caminhos andam congestionados de você. Por mais que eu tente desviar, findo esbarrando na sua rota. Decidi acelerar e tirar os freios, então. Sigo em sua direção. Não tenha cuidado, boy.
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